segunda-feira, fevereiro 06, 2006

'A letra de uma carta de Almor', by J. Lacan







Hoje, eis-me com uma carta. Não de amor, mas de Almor. Trago aqui um pouco do que ela tem a dizer, no que penso ser razoavelmente compreensível aos que não estão tão próximos da linguagem piscanalítica. Essa 'carta' se encontra em 'Le Seminaire de Jacques Lacan, Livre XX: Encore', traduzido como 'Mais, ainda', por M.D.Magno, Ed. Jorge Zahar Editor.

Desse registro, apenas dou algumas pincelas, pois a profundidade que o dito alcança exige uma maior ainda para ser possível continuar a refletir sobre.

A letra de uma carta de Almor (op.cit., págs. 105/120).

"Aí está mais ou menos o que eu escrevia para uso de vocês. Eu escrevia para vocês o quê, em suma? - a única coisa que se pode fazer um pouco de sério, a letra da carta de amor.As suposições piscológicas graças às quais tudo isso durou tanto tempo, eu sou daqueles que não lhes emprestam boa reputação. Entretanto, não se vê por que o fato de ter uma alma seria um escândalo para o pensamento - se isso fosse verdadeiro. Se fosse verdade, a alma só se poderia dizer pelo que permite a um ser - ao ser falante para chamá-lo por seu nome - suportar o intolerável do seu mundo, o que supõe estrangeiro a ele, que dizer, fantasística. O que, essa alma, só se a considera - quer dizer, nesse mundo - por sua paciência e sua coragem em enfrentá-lo. Isto se afirma pelo fato de, até nossos dias, ela não ter, a alma, jamais tido outro sentido.

É aí que alíngua, alíngua em francês, deve me dar uma ajuda - não, como acontece algumas vezes, me oferecendo um homônimo, do d'eux (deles) com o deux (dois), do peut (pode) com o peu (pouco), vejam este il peut peu (ele pode pouco) que está aí é para nos servir de alguma coisa - mas simplesmente me permitindo dizer que a gente âme (que a gente alma). Eu almo, tu almas, ele alma. Aí vocês vêem que só nos podemos servir da escrita, mesmo para incluir o jamais j'âmais (o jamais já almais). Sua existência portanto, da alma, pode ser posta em questão - é o termo próprio para se perguntar se não se trata de um efeito do amor. Tanto que, com efeito, a alma alma a alma, não há sexo na transação. O sexo não conta neste caso. A elaboração de que essa transa resulta é homossexual, como é perfeitamente legível na história.

O que eu disse há pouco da coragem, da paciência da alma em suportar o mundo, é o verdadeiro correspondendo do que faz um Aristóteles desembocar, em sua procura do bem, no seguinte: que cada um dos seres que estão no mundo só se pode orientar para o maior dos seres ao confundir seu bem, seu próprio bem, com aquele mesmo com o qual radia o Ser supremo. O que Aristóteles evoca como (***** grego), isto é, o que representa a possibilidade de um liame de amor entre dois desses seres, pode também, ao manifestar a tensão para o Ser Supremo, se revirar daquele modo que exprimi - é pela coragem em suportar a relação intolerável ao ser supremo que os amigos, os (**** grego), se reconhecem e se escolhem. O ex-sexo dessa ética é manifesta, a ponto de eu querer lhe dar a ênfase que dá Maupassant em algum lugar, de anunciar esse estranho termo de Horla. O exsexo, aí está o homem sobre qual a alma especulou. Mas acontece que as mulheres também são almorosas, quer dizer que elas almam a alma. O que será que pode ser essa alma que elas almam em seu parceiro no entanto homo até o pescoço, do que elas não sairão? Isto só pode, com efeito, conduzi-las a esse termo último - e não é por nada que chamo isto do modo que chamo - (**** grego) como se diz em grego, a histeria, ou seja, bancar o homem, como eu disse, por serem por isso homossexuais ou em ex-sexo, também elas - sendo-lhes daí difícil não sentirem o impasse que consiste no fato de elas se mesmarem no Outro, pois enfim não há necessidade de se saber Outro para sê-lo.

Para que a alma consiga ser, a gente a diferencia, dela, da mulher, é de origem que a gente a diferencia. A gente a dif... ama, a gente a diz fama. O que de mais famoso, na história, restou das mulheres é, propriamente falando, o que delas se pode dizer de infamante. É verdade que lhes resta a honra de Cornélia, mãe dos Gracos. Não é preciso falar de Cornélia aos analistas, que não pensam mais nisso, mas falem a eles de uma Cornélia qualquer, e eles lhes dirão que isso não acabará muito bem para os filhos dela, os Gracos - eles bancarão os craques até o fim de suas existências.

Estava aí o começo da letra da minha carta, um divertimento de alma, um divertialmento.

Fiz então uma alusão ao amor cortês, que aparece no ponto em que o divertialmento homossexual havia caído na suprema decadência, nessa espécie de mau sonho impossível dito da feudalidade. A este nível de degenerescência política, devia tornar-se perceptível que, do lado da mulher, havia alguma coisa que não podia mais de modo algum funcionar.

A invenção do amor cortês não é de modo algum fruto daquilo que se tem o hábito, na história, de simbolizar pela tese-antítese-síntese. E não houve depois a mínima síntese, é claro - aliás, não há jamais. O amor cortês brilhou na história como um meteoro, e viu-se retonar em seguida todo o bricabraque de uma pretensa renascença das velharias antigas. O amor cortês restou enigmático.

Aí há um pequeno parêntese - quando um faz dois, não há retorno jamais. Não volta a fazer de novo um, mesmo um novo. A Aufehebung é um desses bonitos sonhos de filosofia.

Depois do meteoro do amor cortês, foi de uma partitura completamente diferente que veio o que o rejeitou à sua fertilidade primeira. Foi preciso nada mais do que o discurso científico, ou seja, algo que não deve nada aos pressupostos da alma antiga.

E é dali somente que surge a psicanálise, isto é, a objetivação do fato de que o ser falante passa ainda o tempo a falar em pura perda. Ele passa ainda o tempo a falar para um ofício dos mais curtos - dos mais curtos, eu digo, pelo fato de que esse ofício não vai mais além do que estar em curso ainda, quer dizer, o tempo necessário para que isso enfim se resolva - aí está o que temos diante do nariz - demograficamente. (parênteses meus, para lembrar de Das Fliess, e também de ida, pingala e shumshuma).

De modo algum não é isto que arranjará as relações do homem com as mulheres. Ter visto isto, é o gênio de Freud. Freud, é um nome engraçado - Kraft durch Freud, é todo um programa. É o salto mais engraçado da santa farsa da história. A gente podia talvez enquanto isso dura, esse pedaço, ter um lampejozinho de algo que seria concernente ao Outro, na medida em que é com isso que a mulher tem a ver.


Trago agora um complemento essencial ao que já foi muito bem visto, mas que esclareceria por fazer perceber por quais vias isso se viu.

O que se viu, mas apenas do lado do homem, foi que aquilo com o que ele tem a ver é com o objeto a, e que toda a sua realização quanto à relação sexual termina em fantasia. Viu-se isto muito bem a propósito dos neuróticos. Foi dai que se partiu.

(....)

Só que a gente teve, na seqüência, oportunidade de perceber que as perversões, tais como a gente crê demarcá-las na neurose, não é isto de modo algum. A neurose é mais o sonho do que a perversão. Os neuróticos não têm nenhum dos caracteres do perverso. Simplesmente sonham com eles, o que é muito natural, pois, sem isto, como atingir o parceiro?

Os perversos, a gente começou então a encontrá-los, são aqueles que Aristóteles não queria ver a nenhum preço. Há neles uma subversão da conduta apoiada num saber-fazer, o qual está ligado a um saber, ao saber sobre a natureza das coisas, há uma embreagem direta da conduta sexual sobre o que é sua verdade, isto é, sua amoralidade. Ponham alma nisso na partida - a almoralidade.

Há uma moralidade - eis a conseqüência - da conduta sexual. A moralidade da conduta sexual é o subentendido de tudo o que se disse do Bem.

Só que, à força de se dizer do bem, isso acaba em Kant, onde a moralidade confessa o que ela é. É o que eu acreditei dever adiantar num artigo, Kant com Sade - ela confessa que ela é Sade, a moralidade. Vocês escreverão Sade como quiserem - seja com uma maíuscula, pare render homenagem a esse pobre idiota que nos deu sobre isso intermináveis escritos - seja com minúscula, pois no fim das contas é sua maneira, dela, de ser agradável, e que, em francês antigo, é o que ça, isso, quer dizer - ou seja, melhor, çade, para dizer que a moralidade, temos mesmo assim que dizer que isso termina no nível do ça, do isso, o que é dizer tudo. Dito de outro modo, o de que se trata é de o amor ser impossível, e a relação sexual se abismar no não-senso, o que não diminui em nada o interesse que devemos ter pelo Outro.

A questão é, com efeito, saber no que consiste o gozo feminino, na medida em que ele não está todo ocupado com o homem, e mesmo, eu diria que, enquanto tal, não se ocupa dele de modo algum, a questão é saber o que é do seu saber.

Se o inconsciente nos ensinou alguma coisa, foi primeiro o seguinte, que em alguma parte, no Outro, isso sabe. Isso sabe porque isso se baseia justamente nesses significantes de que o sujeito se constitui.

Ora, isso se presta a confusões, porque é difícil para quem alma não pensar que tudo pelo mundo sabe o que ele tem a fazer. Se Aristóteles suporta seu Deus com essa esfera imóvel, com o uso da qual cada um tem que seguir seu bem, é porque ela é tida por saber seu bem. Aí está aquilo que a falha induzida pelo discurso científico nos obriga a largar.

Não há nenhuma necessidade de saber por quê. Não temos mais nenhuma necessidade desse saber que Aristóteles parte no origem. Não temos nenhuma necessidade, para explicar os efeitos da gravitação, de imputar à pedra que ela sabe o lugar a que ela deve chegar. A imputação de uma alma ao animal faz do saber o ato por excelência, de nada mais que o corpo - vocês vêem que Aristóteles não estava assim tão por fora - só que o corpo é feito para uma atividade, uma (****grego), e que em alguma parte a enteléquia desse corpo se suporta com essa substância que ele chama de alma.

A análise se presta aqui a essa confusão de nos restituir a causa final, de nos fazer dizer que, para tudo que concerne ao menos ao ser falante, a realidade é assim, quer dizer, fantasia. Será que isso é alguma coisa que, de qualquer maneira, possa satisfazer o discurso científico?

Há, segundo o discurso analítico, um animal que se vê falante e para quem, por habitar o significante, resulta ser sujeito dele (** - Disse um dos Titãs - a banda: cada homem é o seu próprio animaaalllll). Daí, tudo se joga para ele no nível da fantasia, mas de uma fantasia perfeitamente desarticulável de maneira que de conta do seguinte, que ele sabe muito mais do que crê saber quando age. Mas não basta que seja assim para que tenhamos o princípio de uma cosmologia.

É a eterna ambigüidade do termo inconsciente. Certamente, o inconsciente é suposto pelo fato de que no ser falante há em algum lugar algo que sabe mais do que ele, mas isto não é um modelo aceitável do mundo. A psicanálise, na medida em que sua possibilidade se atém ao discurso da ciência, não é uma cosmologia, se bem que basta que o homem sonhe para ver ressaltar esse imenso bricabraque, esse guarda-móveis do qual ele tem que se desvencilhar, e que constitui seguramente uma alma, uma alma ocasionalmente amável quando alguma coisa queira mesmo amá-la. A mulher só pode amar no homem, eu disse, a maneira com que ele enfrenta o saber com que ele alma. Mas, para o saber com que ele é, a questão se coloca a partir do seguinte, que há algo, o gozo, de que não é possível dizer se a mulher pode dizer alguma coisa - se ela pode dizer o que sabe dele. Ao termo desta conferência de hoje, chego então, como sempre, à margem do que polarizava meu tema, que é a seguinte, se pode ser colocada a questão do que ela sabe disso. Não é outra questão, senão a de saber se esse termo de que ela goza mais além de todo esse jogar que constitui sua relação ao homem, e que eu chamo de Outro, significando-o por um A, se esse termo, ele, sabe alguma coisa. Pois é nisso que ela é ela própria sujeita ao Outro, tanto quanto o homem.

Será que o outro sabe?

Havia um chamado Empédocles - como por acaso, Freud se serve dele, de tempos em tempos, como de um saca-rolhas - de quem só conhecemos sobre isto três versos, mas dos quais Aristóteles tira muito bem as conseqüências quando enuncia que, em suma, Deus era, para Empédocles, o mais ignorante de todos os seres, por não conhecer de modo algum o ódio. É o que os cristãos mais tarde transformaram em dilúvios de amor. Infelizmente, isto não cola, porque não conhecer de modo algum o ódio é não conhecer de modo algum o amor também. Se Deus não conhece o ódio, é claro, para Empédocles, que ele sabe menos do que os mortais. De sorte que poderíamos dizer que quanto mais o homem se possa prestar, para a mulher, à confusão com Deus, quer dizer, aquilo de que ela goza, menos ele odeia e menos ele é - e uma vez que, depois de tudo, não há amor sem ódio, menos ele ama."

Eu, continuando: eis, enfim, o trágico da análise. Ou, quem sabe, o seu engodo. E, quem sabe, não só da psicanálise. Não é possível acabar com o sintoma, mas tão-somente redimensioná-lo, sublimá-lo. Isso pelo simples fato de que o sintoma diz de nós, do sujeito identificado a uma razão de ser, pode-se por assim dizer... uma identificação sexual, que lhe dá sentido, pois sem identificação não há sujeito. E isso se transmite através da linguagem. É pelo 'tu és isso, esse é teu nome' que passa o viés da identificação, não de uma forma assim tão simples. Por óbvio, só há um sujeito para um outro. Ou não. Eis a questão. Pelo viés da linguagem, isso se pode demonstrar pelo Eu, Tu, Ele. Unário, Binário, Trinitário. Mas há um mais, além. É lá que reside esse indizível - o lado da mulher. Isso porém não quer dizer que esse lado seja apenas acessível a ela. Seria lá que reside o nirvana, além da identificação sexual? Ou, quem sabe, unificando as duas dualidades? ** Pode ser. Mas isso implica, necessariamente, sorry, em acabar com o tesão. Mas isso será assim tão ruim? O que essa carta de almor nos diz é que não há relação sexual. Pelo simples fato de que o amor é narcísico. Nos relacionamos com nós mesmos, refletidos no outro. Lacan disse algo como: amo tanto você em mim, que te mutilo. Violêcia. Sexual. Acabar com a violência é acabar com o sexo. É deslibidinizar. Mas sem libido, cadê eu? Ó, mongecos, cogumelos shitake ajudam a evitar a polução noturna. Prática comum em mosteiros budistas do Tibet. Mas acabar com a identificação sexual é acabar com o eu e isso é impossível para a psicanálise. Por isso se chega a esse limite do indizível. E o que haverá nesse mais além?

* Foto by Liana Schulman, Las Vegas, 2006.

** (Escrevi duas dualidades... isso requer que eu me detenha aí e mergulhe numa profusão de conceitos para discernir o que quer me dizer esse lapso. E por isso mantenho duas dualidades).