segunda-feira, setembro 04, 2006

Ah, lo previdi! Ah, t'invola agl'occhi miei.




ANDROMEDA:

Ah, lo previdi!
Povero Prence, con quel ferro istesso,
Che me salvò, ti lacerasti il petto.
(ad Euristeo)
Ma tu sì fiero scempio
Perché non impedir? Come, o crudele,
D'un misero a pietà non ti movesti?
Qual tigre ti nodri? Dove nascesti?

[Aria]

Ah, t'invola agli'occhi miei,
Alma vile, ingrato cor!
La cagione, oh Dio, tu sei
Del mio barbaro dolor.
Va, crudele! Va, spietato!
Va, tra le fiere ad abitar.

[Recitativo]

Misera! Invan m'adiro,
E nel suo sangue intanto
Nuota già l'idol mio... Con quell'acciaro,
Ah Perseo, che facesti?
Mi salvasti poc'anzi, or m'uccidesti.
Col sangue, ahi, la bell'alma,
Ecco, già usci dallo squarciato seno.
Me infelice! Si oscura
Il giorno agli occhi miei,
E nel barbaro affanno il cor vien meno.
Ah, non partir, ombra diletta, io voglio
Unirmi a te. Sul grado estremo, intanto
Che m'uccide il dolor, fermati alquanto!

[Cavatina]

Deh, non varcar quell'onda,
Anima del cor mio.
Di Lete all'altra sponda,
Ombra, compagna anch'io
Voglio venir con te.


"AH, LO PREVIDI!" - "AH, T'INVOLA AGL'OCCHI MIEI" -
"DEH, NON VARCAR QUELL'ONDA" K.272, atribuída a Giovanni Escena.

Essa ária, conhecida como Ah, lo previdi, K. 272, foi escrita por Wolfang Amadeus Mozart em agosto de 1777, em Salzburg, para uma de suas cantoras prediletas, a soprano Josepha Dussek. Foi inserida na Ópera Andromeda, baseada na mítica história da princesa que foi prometida em casamento por seu pai ao rei de Argos, para livrar-se de uma terrível maldição: a obrigação de oferecer uma virgem para ser sacrificada todos os meses. Chegada a hora, Andromeda foi entregue a Argos, que a transformou em uma estátua de pedra à margem do mar. Perseus, inconformado, saiu em defesa de seu amor, matou o mostro e salvou Andromeda. Seu pai, mesmo assim, se opôs ao casamento. Convencido de que nunca poderia casar-se com a mulher que amava, Perseus, espada em punho, foi-se embora com a inteção de matar a si próprio. É nessa hora que entra Andromeda, atormentada pela idéia de que Perseus havia cometido suicídio. Ela chama por ele, para que a espere e assim possam juntar-se no mundo submerso, atravessarem juntos o Rio Styx e enfim tomarem a poção oferecida por Lethe, que promete o alívio para todas as dores do mundo.

Músicas diferentes, feitas em épocas tão diferentes quanto a do post anterior, Desvelo, será que dizem enfim de mundos tão distintos, a partir da subjetividade em busca da representação do lugar do 'outro', aqui ocupado pelo amado? Ou seja: diante dessa impossibilidade, assim como Perseus e Andromeda, o que dizer da procura da morte para o alívio da dor? De uma forma ou de outra, eis um valor que repete e interroga: a realização do eu está intrinsicamente ligada ao outro, para ter valor? Não questiono aqui as diferenças sobre visões pontuais acerca de um tema qualquer, mas sim se a condição de humanidade poderia prescindir da sociabilidade e seguir em frente numa existência solitária, independentemente da opinião e companhia alheia: algo como uma existência 'autista', por escolha consciente, se isso fosse possível.

Ah, lo previdi não está aqui à toa, mas sim em busca de mais uma nuance a compor o referencial narcísico do eu nominável que aqui escreve. Veio pela primeira vez à escrita em setembro de 2006, buscou um instante de janeiro de 2007 para ilustrar essas ponderações e suas próprias interrogações, desde sempre.

Um eu que lembra de Ken Wilber, quando diz: "O valor de algo é aquele que as pessoas lhe atribuem e cada pessoa tem um padrão legitimamente diferente de atribuir valor. No final, a única justificativa para uma crença se resume na frase 'justificado por mim' (em "Uma Teoria de Tudo", pág. 27, Ed. Cultrix-SP).

Um eu que aqui continua a interrogar, nas palavras M.D.Magno: "A alienação, seguindo Lacan, é a operação essencial que liga-se à constituição do sujeito no campo do Outro, determinando a captura do sujeito pelo significante, ou seja, " ... condena o sujeito a só aparecer nessa divisão que venho, me parece, de articular suficientemente ao dizer que se ele aparece de um lado como sentido, produzido pelo significante, do outro ele aparece como afânise." (4) A cisão original do sujeito o divide entre S1 e S2 , ou seja, ele cai como efeito da articulação dessa bateria significante mínima. O sujeito como um S1 é transformado em "nada", petrifica-se, é incapaz de aceder à palavra, ao passo que o S2 outorga-lhe sentido e, ao fazer isso, apaga o ser, produzindo a afânise, ou fading do sujeito. "No vel alienante, se o sujeito escolhe o ser, perde o sentido e se escolhe o sentido, se produz sua afânise e perde o ser; na interseção, mordendo sobre os dois campos, entre o campo do sujeito, o do ser, e o campo do Outro, o do sentido, está o sem-sentido, onde se situará o inconsciente. É uma escolha que implica necessariamente uma perda, cujos exemplos são "a bolsa ou a vida" ou "a liberdade ou a morte" ..."(
5)

A partir dessas palavras, incontestável estarmos em tempo que urge a reflexão sobre a responsabilidade de cada um sobre a sua diária contribuição para evitar a combustão que se prenuncia, nesse frente-a-frente. Em quais valores assentamos nossas relações afetivas, familiares e sociais, considerada a nossa singular responsabilidade pela liberdade de nossas escolhas? Ou seja: até onde alcança a nossa liberdade de escolha, quando se trata da responsabilidade pelas perdas sociais já consumadas? Um social que basta de mais um para existir, mas apenas com o terceiro pode prosseguir.

E para concluir, um pouco de interser, por Monja Cohen (in http://monjacoen.com.br/interser.htm):

" Era o entardecer. Tudo estava silencioso a não ser por alguns pássaros. Vesti os hábitos formais, acendi um incenso de sândalo que trouxera, fiz um pouco de chá e enquanto o bebia lentamente puz-me a olhar para a palha de arroz que forrava o chão de todo o aposento.
De repente percebi o chão vivo. A palha de arroz era um grande arrozal. O vento balançava as longas hastes douradas. Foi tudo muito rápido, mas muito vívido. Pouco depois o chão voltou a ser palha de arroz antiga, já um pouco desgastada pelos anos de uso, mas ainda em muito bom estado. Pensei em todas as pessoas que aqueles tatami suportaram e as que ainda servirão e senti uma grande reverência pelos campos de arroz.
A interdependência, ensinada nos textos sagrados, está em toda parte. O arroz só é possível se houver água, sol, nuvem, sapos que coaxam nos verões à sua volta, senhoras idosas de costas curvas pelos anos de constante plantar e colher. O arrozal existe se houver crianças correndo, varais de roupas coloridas, minhocas, e até nossos pensamentos e sentimentos. Tudo interligado, interconectado e vivo. O arroz é feito de coisas não arroz. Cada um de nós existe graças a todos os não-nós. Palha de arroz. Tatami. Vislumbre breve do milagre de interser."




Foto Liana Schulman, jan/2007, CWB.

Referências sobre a composição da Ópera Andromeda e de sua mítica história retiradas de informações via google (
http://asianyouthorchestra.com/public_html/ayo%20new%20site%202/Note%20--%20Previdi.html). Post que começou a ser ensaiado em setembro de 2006, mas que só arriscou vir à tona nesse fevereiro de 2007.