quarta-feira, agosto 15, 2007

Os encontros de um caracol aventureiro.



Por García Lorca


Há doçura infantil
na manhã quieta.
As árvores estendem
seus braços à terra.
Um bafo tremente
cobre as sementeiras,
e as aranhas estendem
seus caminhos de seda
-raias no cristal limpo
do ar.

Na alameda
um manancial recita
seu canto entre as ervas.
E o caracol, pacífico
burguês da vereda,
ignorado e humilde,
a paisagem contempla.
A divina quietude
da Natureza
deu-lhe valor e fé,
e esquecendo-se das penas
de seu lar, desejou
ver o fim da senda.

Pôs-se a andar e internou-se
em um bosque de heras
e de urtigas. No meio
havia duas rãs velhas
que tomavam sol,
entediadas e enfermas.

'Esses cantos modernos'
-murmurava uma delas-
'são inúteis.' 'Todos,
amiga' -lhe responde
a outra rã, que estava
ferida e quase cega. -
'Quando jovem acreditava
que se finalmente Deus ouvisse
o nosso canto, teria
compaixão. E minha ciência,
pois já vivi muito,
faz com que não o creia.
Eu já não canto mais...'

As duas rãs se queixam,
pedindo uma esmola
a uma rãzinha nova
que passa presumida
apartando as ervas.

Ante o bosque sombrio
o caracol se aterra.
Quer gritar. Não pode.
As rãs aproximam-se dele.

'É uma mariposa?'
-diz a quase cega.
'Tem dois cornichos'
- a outra rã responde.
'É o caracol. Vens,
caracol, de outras terras?'

'Venho da minha casa e quero
bem depressa voltar para ela.'
'É um bicho mui covarde'
- exclama a rã cega.
'Não cantas nunca?' 'Não canto',
diz o caracol. 'Nem rezas?'
'Tampouco - nunca aprendi.'
'Nem crês na vida eterna?'
'O que é isso?'

'É viver sempre
dentro da água mais serena,
perto de uma terra florida
que rico manjar sustenta.'

'Quando menino me disse
um dia minha pobre avó
que, ao morrer, eu iria
para junto das folhas mais tenras
das árvores mais altas.'

'Uma herege era tua avó.
A verdade te dizemos,
nós. Acreditarás nela' -
dizem as rãs furiosas.

'Por que quis ver a senda?'
-geme o caracol. 'Sim, creio
para sempre na vida eterna
que [me] predicais...'

As rãs,
muito pensativas, afastam-se,
e o caracol, assustado,
vai-se perdendo na mata.

As duas rãs mendigas
como esfinges ficam.
Uma delas pergunta:
'Crês tu na vida eterna?'
'Eu não' - diz mui triste
a rã ferida e cega.
'Por que dissemos, então,
ao caracol que cresse?'
'Porque... Não sei por quê'
- diz a rã cega.
'Encho-me de emoção
ao sentir a firmeza
com que chamam meus filhos
a Deus lá da acéquia...'

O pobre caracol
volta atrás. Na senda
um silêncio ondulado
emana* da alameda.
Com um grupo de formigas
encarnadas se encontra.
Vão muito alvoroçadas,
arrastando atrás de si
outra formiga que tem
truncadas as antenas.
O caracol exclama:
'Formiguinhas, paciência.
Por que assim tratais
vossa companheira?
Contai-me o que fez.
Eu julgarei com consciência.
Conta-o tu, formiguinha'.

A formiga, meio morta,
diz muito tristemente:
'Eu vi as estrelas'.
'Que são as estrelas', dizem
as formiguinhas inquietas.

E o caracol pergunta,
pensativo: 'Estrelas?'
'Sim' - repete a formiga-,
'vi as estrelas,
subi na árvore mais alta
que existe na alameda
e vi milhares de olhos
dentro de minhas trevas.'
E o caracol pergunta:
'Mas o que são as estrelas?'
'São luzes que levamos
sobre nossa cabeça'.
'Nós não as vemos',
as formigas comentam.
E o caracol: 'Minha vista
só alcança as ervas'.

E as formigas exclamam,
movendo as suas antenas:
'Matar-te-emos, és
perguiçosa e perversa.
O trabalho é a tua lei'.

'Eu vi as estrelas',
diz a formiga ferida.
E o caracol sentencia:
'Deixai-a ir,
continuai as vossas tarefas.
É possível que, muito em breve,
já rendida, morra'.

Pelo ar dulcífico,
cruzou uma abelha.
A formiga, agonizando,
cheira a tarde imensa,
e diz: 'É a que vem
levar-me a uma estrela'.

As demais formiguinhas
fogem ao vê-la morta.

O caracol suspira
e aturdido se afasta
cheio de confusão
por causa do eterno. 'A senda
não tem fim' - exclama.
'Talvez às estrelas
se chegue por aqui.
Mas minha grande fraqueza
me impedirá de chegar.
Não pensemos mais nelas.'

Tudo estava brumoso
de sol débil e névoa.
Campanários longínquos
chamam gente à igreja,
e o caracol, pacífico
burguês da vereda,
aturdido e inquieto,
a paisagem contempla.


Tradução de William Agel de Mello.

Já faz algum tempo que procurava escrever algo que combinasse com essa gravura, mas não veio qualquer inspiração publicável. Foi então que decidi reproduzir esse poema de Federico García Lorca, escrito em dezembro de 1918, em Granada, Espanha. E para me despedir, deixo a pergunta: se contássemos a uma lagartixa que desconhece a sua verdadeira natureza que, após a fase do casulo, o milagre da vida a transformará em borboleta, permitindo que de seu chão rastejante alcance a liberdade de voar aos quatro ventos, será que ela acreditaria?

*Na edição que tenho da tradução feita por William Agel de Mello foi mantida a palavra mana, que em espanhol corresponde à terceira pessoa do singular do verbo manar, brotar de uma parte um líquido. Por isso, preferi a alteração para emana.
O poema, em sua versão original, em espanhol, encontra-se no comentário a esse post.

5 comentários:

Cláudia disse...

Hay dulzura infantil
en la mañana quieta.
Los árboles extienden
sus brazos a la tierra.
Un vaho tembloroso
cubre las sementeras,
y las arañas tienden
sus caminos de seda
-rayas al cristal limpio
del aire-.
En la alameda
un manantial recita
su canto entre las hierbas.
Y el caracol, pacífico
burgués de la vereda,
ignorado y humilde,
el paisaje contempla.
La divina quietud
de la Naturaleza
le dio valor y fe,
y olvidando las penas
de su hogar, deseó
ver el fin de la senda.

Echó a andar e internose
en un bosque de yedras
y de ortigas. En medio
había dos ranas viejas
que tomaban el sol,
aburridas y enfermas.

"Esos cantos modernos
-murmuraba una de ellas-
son inútiles". "Todos,
amiga -le contesta
la otra rana, que estaba
herida y casi ciega-.
Cuando joven creía
que si al fin Dios oyera
nuestro canto, tendría
compasión. Y mi ciencia,
pues ya he vivido mucho,
hace que no lo crea.
Yo ya no canto más..."

Las dos ranas se quejan
pidiendo una limosna
a una ranita nueva
que pasa presumida
apartando las hierbas.

Ante el bosque sombrío
el caracol se aterra.
Quiere gritar. No puede.
Las ranas se le acercan.

"¿Es una mariposa?",
dice la casi ciega.
"Tiene dos cuernecitos
-la otra rana contesta-.
Es el caracol. ¿Vienes,
caracol, de otras tierras?"

"Vengo de mi casa y quiero
volverme muy pronto a ella".
"Es un bicho muy cobarde
-exclama la rana ciega-.
¿No cantas nunca?" "No canto",
dice el caracol. "¿Ni rezas?"
"Tampoco: nunca aprendí".
"¿Ni crees en la vida eterna?"
"¿Qué es eso?
"Pues vivir siempre
en el agua más serena,
junto a una tierra florida
que a un rico manjar sustenta".

"Cuando niño a mí me dijo
un día mi pobre abuela
que al morirme yo me iría
sobre las hojas más tiernas
de los árboles más altos".

"Una hereje era tu abuela.
La verdad te la decimos
nosotras. Creerás en ella",
dicen las ranas furiosas.

"¿Por qué quise ver la senda?
-gime el caracol-. Sí creo
por siempre en la vida eterna
que predicáis..."
Las ranas,
muy pensativas, se alejan.
y el caracol, asustado,
se va perdiendo en la selva.

Las dos ranas mendigas
como esfinges se quedan.
Una de ellas pregunta:
"¿Crees tú en la vida eterna?"
"Yo no", dice muy triste
la rana herida y ciega.
"¿Por qué hemos dicho, entonces,
al caracol que crea?"
"Por qué... No sé por qué
-dice la rana ciega-.
Me lleno de emoción
al sentir la firmeza
con que llaman mis hijos
a Dios desde la acequia..."

El pobre caracol
vuelve atrás. Ya en la senda
un silencio ondulado
mana de la alameda.
Con un grupo de hormigas
encarnadas se encuentra.
Van muy alborotadas,
arrastrando tras ellas
a otra hormiga que tiene
tronchadas las antenas.
El caracol exclama:
"Hormiguitas, paciencia.
¿Por qué así maltratáis
a vuestra compañera?
Contadme lo que ha hecho.
Yo juzgaré en conciencia.
Cuéntalo tú, hormiguita".

La hormiga, medio muerta,
dice muy tristemente:
"Yo he visto las estrellas."

"¿Qué son las estrellas?", dicen
las hormigas inquietas.
Y el caracol pregunta
pensativo: "¿Estrellas?"
"Sí -repite la hormiga-,
he visto las estrellas,
subí al árbol más alto
que tiene la alameda
y vi miles de ojos
dentro de mis tinieblas".
El caracol pregunta:
"¿Pero qué son las estrellas?"
"Son luces que llevamos
sobre nuestra cabeza".
"Nosotras no las vemos",
las hormigas comentan.
Y el caracol: "Mi vista
sólo alcanza a las hierbas."

Las hormigas exclaman
moviendo sus antenas:
"Te mataremos; eres
perezosa y perversa.
El trabajo es tu ley."

"Yo he visto a las estrellas",
dice la hormiga herida.
Y el caracol sentencia:
"Dejadla que se vaya.
seguid vuestras faenas.
Es fácil que muy pronto
ya rendida se muera".

Por el aire dulzón
ha cruzado una abeja.
La hormiga, agonizando,
huele la tarde inmensa,
y dice: "Es la que viene
a llevarme a una estrella".

Las demás hormiguitas
huyen al verla muerta.

El caracol suspira
y aturdido se aleja
lleno de confusión
por lo eterno. "La senda
no tiene fin -exclama-.
Acaso a las estrellas
se llegue por aquí.
Pero mi gran torpeza
me impedirá llegar.
No hay que pensar en ellas".

Todo estaba brumoso
de sol débil y niebla.
Campanarios lejanos
llaman gente a la iglesia,
y el caracol, pacífico
burgués de la vereda,
aturdido e inquieto,
el paisaje contempla.

Ricardo Porfírio disse...

Oi! estou postando para lhe dizer que adoro este texto do Lorca. Como também tenho um Blog utilizei-me desta sua excelente versão do poema. Espero que você não se incomode por isto.
Um muito obrigado e Força Sempre!!

Cláudia disse...

Haikai para os caracóis aventureiros, pacíficos burgueses de vereda que, aturdidos, a paisagem contemplam.

Enrolado no Samsara,
Onde está o Nirvana?-,
Pergunta-se o caracol...

Al Scandar disse...

Lindo!!

Estava procurando este poema, obrigado =)

Talvez te goste ouvir uma música, inspirada neste poema, parte da trilha de uma peça fantástica sobre Lorca que assisti ano passado aqui em São Paulo:

http://web.mac.com/osvaldogabrieli/opublico/Media/2008caracol-1.mp3

Foi por lembrar da peça que vim procurar o poema.

Ah, o site da peça aqui:

http://www.xptobrasil.com/opublico

Pena que acabou-se... talvez esteja em cartaz nalguma estrela :)

Beijos,

ale
~Ni!~

Cláudia disse...

A gravura ficou um bom tempo sem palavras, até que num belo dia encontrou o caracol aventureiro de Lorca, sussurrando palavras perfeitas para compor com ela :))