quinta-feira, março 27, 2008

Passeio Socrático


Passeio Socrático, por Frei Beto.

Hoje compartilho um texto que também me foi enviado por um querido amigo, que acompanhava o meu dia-a-dia, quando resolvi começar a escrever por aqui. E certamente sabia o quanto eu apreciaria o artigo que ora reproduzo. Espero que gostem também :))


"Ao visitar em agosto a admirável obra social de Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador, ouvi-o contar que na infância, vivida ali na pobreza, ele não conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha, feijão, frutas e hortaliças.
"Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse.
O eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc. A economia de mercado, centrada no lucro e não nos direitos da população, nos submete ao consumo de símbolos. O valor simbólico da mercadoria figura acima de sua utilidade. Assim, a fome a que se refere Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável.
É próprio do humano - e nisso também nos diferenciamos dos animais - manipular o alimento que ingere. A refeição exige preparo, criatividade, e a cozinha é laboratório culinário, como a mesa é missa, no sentido litúrgico.
A ingestão de alimentos por um gato ou cachorro é um atavismo desprovido de arte. Entre humanos, comer exige um mínimo de cerimônia: sentar à mesa coberta pela toalha, usar talheres, apresentar os pratos com esmero e, sobretudo, desfrutar da companhia de outros comensais.
Trata-se de um ritual que possui rubricas indeléveis. Parece-me desumano comer de pé ou sozinho, retirando o alimento diretamente da panela.
Marx já havia se dado conta do peso da geladeira.
Nos "Manuscritos econômicos e filosóficos" (1844), ele constata que "o valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor de seus respectivos bens. Portanto, em si o homem não tem valor para nós”.
O capitalismo de tal modo desumaniza que já não somos apenas consumidores, somos também consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos que me cercam é que determinam meu valor social.
Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo ignaro da pobreza e à cultura da exclusão.
Para o povo maori da Nova Zelândia cada coisa, e não apenas as pessoas, tem alma. Em comunidades tradicionais de África também se encontra essa interação matéria-espírito. Ora, se dizem a nós que um aborígine cultua uma árvore ou pedra, um totem ou ave, com certeza faremos um olhar de desdém.
Mas quantos de nós não cultuam o próprio carro, um vinho guardado na adega, uma jóia?
Assim como um objeto se associa ao seu dono nas comunidades tribais, na sociedade de consumo o mesmo ocorre sob a sofisticada égide da grife.
Não se compra um vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire um carro, e sim uma Ferrari; não se bebe um vinho, mas um Château Margaux. A roupa pode ser a mais horrorosa possível, porém se traz a assinatura de um famoso estilista a gata borralheira transforma-se em Cinderela...
Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura neoliberal nos faz acreditar que delas emana uma energia que nos cobre como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder. Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles tocamos. E se somos privados desse privilégio, o sentimento de exclusão causa frustração, depressão, infelicidade.
Não importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados, é alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia. Ela se torna também objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela, mas não é ela: bens, cifrões, cargos etc.
Comércio deriva de "com mercê", com troca. Hoje as relações de consumo são desprovidas de troca, impessoais, não mais mediatizadas pelas pessoas.
Outrora, a quitanda, o boteco, a mercearia, criavam vínculos entre o vendedor e o comprador, e também constituíam o espaço das relações de vizinhança, como ainda ocorre na feira.
Agora o supermercado suprime a presença humana. Lá está a gôndola abarrotada de produtos sedutoramente embalados. Ali, a frustração da falta de convívio é compensada pelo consumo supérfluo.
"Nada poderia ser maior que a sedução" - diz Jean Baudrillard - "nem mesmo a ordem que a destrói."
E a sedução ganha seu supremo canal na compra pela internet. Sem sair da cadeira o consumidor faz chegar à sua casa todos os produtos que deseja.
Vou com freqüência a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam indagando se necessito algo.
"Não, obrigado. Estou apenas fazendo um passeio socrático", respondo. Olham-me intrigados.
Então explico:
Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo.
Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas.
E, assediado por vendedores como vocês, respondia:
"Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz"".

quarta-feira, março 26, 2008

Um gênio que mora na rua



Nem sempre é possível dedicar-me integralmente ao prazer de escrever. Para isso, é preciso também ler, integrar-se ao mundo, para tecer algumas impressões, nem que seja acerca das sensações que palpitam o estar dele afastado. De certa forma, é sempre essa dicomotia que me move a estar aqui. "Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração", nos disse Carlos Drummond de Andrade. Mundo, mundo, mundo: o meu, o teu, o nosso! Sim, ele está em toda a parte, não há como fugir, ele nos é tão intrínseco como a própria vida. Mundo, cada um tem o seu, mas sem o mundo do outro parece que a vida sempre está a nos dizer que o nosso mundinho não faz lá muito sentido.


Aqui, trago uma história que diz muito dessa minha perplexidade quando tantas vezes me pergunto sobre o que é realmente essencial. O dom de "Charles da Flauta", não importa o quão genial, aponta que há alguma outra necessidade mais urgente que precisa ser equilibrada, afinada.

"Ama o teu próximo como a ti mesmo" - entendem alguns que esse mandamento diz não apenas da necessidade de amarmos o outro, mas essencialmente a nós mesmos.

Despeço-me, com sinceros agradecimentos ao sempre amigo que compartilhou essa reportagem, à qual me dei ao luxo de reproduzir, nesse mundo cibernético onde pouco se cria e muito se copia!

"Um gênio que mora na rua", por Gilberto Dimenstein

"Charles Pereira Gonçalves é um dos exemplos brasileiros mais definitivos de desperdício de talento --viciado em crack e infestado pela tuberculose, é um reconhecido gênio musical que mora na rua.

Quando era menino e tocava flauta nas ruas do centro de São Paulo, Charles chamou a atenção de músicos. Impressionou tanto e tanta gente que, em pouco tempo, foi convidado para estudar na Alemanha, onde seria aluno, com todas as despesas pagas, do primeiro flautista da Orquestra Filarmônica de Berlim. "Com estudo, ele vai ser um dos maiores flautistas do mundo", dizia o maestro Júlio Medaglia, que abriu para Charles o caminho até a Alemanha. Altamiro Carrilho disse, perplexo, que alguém tocar tão bem sem nenhum estudo, só teria uma explicação: " Reencarnação"

Mas Charles caiu na droga, não conseguiu viajar e hoje vive debaixo do Minhocão, no meio do barulho incessante e da poluição que só agrava sua tuberculose.

Por trás desse desperdício, existem a pobreza, a desestrutura familiar, a falta de educação e a limitada rede assistencial. Apenas nas regiões metropolitanas são sete milhões de jovens que não estudam nem trabalham. Sem contar os que estudam em escolas ruins, incapazes de desenvolver talentos. Por isso, ampliar a bolsa em dinheiro para jovens (o que eu concordo para reduzir a evasão) sem melhorar a escola, tornando-a uma porta de saída, beira o desperdício. Vemos como é difícil, depois de certo momento, recuperar um indivíduo e integrá-lo à sociedade.

Se o país imaginasse quanto talento é desperdiçado, ouviria melhor a poluição sonora da falta de perspectiva --assim como pode ouvir a genialidade perdida de Charles.

Coloquei em meu site (www.dimenstein.com.br) uma pequena amostra do talento desse flautista.

Gilberto Dimenstein, 48, é membro do Conselho Editorial da Folha e criador da ONG Cidade Escola Aprendiz. Coordena o site de jornalismo comunitário da Folha. Escreve para a Folha Online às segundas-feiras".

sexta-feira, março 14, 2008

A mulher que comia pasta de dente





Não do jeito você está pensando, da espuminha que fica na boca enquanto a gente escova os dentes. Ela comia pasta direto do tubo, sorvia a sensação intensa de frescor, o carinho acre-adocicado descendo pela garganta... e saciedade.

A mania começou na adolescência, por causa do medo do mau-hálito. Comia antes das festinhas ou de sair com um pretendente, mais tarde quando tinha uma reunião ou recebia visitas em casa. E como toda compulsão, sempre que a vida pressionava ela pressionava o tubo. Nas decepções, momentos de angústia ou stress repetia seu ritual de abrir a tampinha, colocar a ponta do tubo na boca e apertar, bem devagar. No começo, as doses vinham por motivos graves, depois, banalidades bastavam.

O alarme soou quando digeriu um tubo inteiro no dia em que a gola de uma blusa nova esgarçou na primeira lavada. Mas aonde procurar ajuda? Narcóticos anônimos? Seria uma fixação oral? Revelar seu segredo mais íntimo viraria troça até entre loucos. E lá se foi mais um tubo dos grandes, e uma cólica forte acompanhada de enjôo. Baixou no hospital. Na volta para casa, lívida, apática, passou na farmácia e comprou agulhas e seringas.


Esse conto foi escrito por um amigo, o Gustavo Martins. Eu que já havia escutado sobre a idéia do escrito protestei contra o final, que acenava para uma fatalidade certa: uma doença à procura de uma cura. E foi assim que surgiu a idéia de continuar e dar uma nova versão àquele fim de poucas luzes.

Eis aqui a segunda parte. Uma diversão e distração, enquanto o "Kadosh Barúch Hú" ainda se pergunta em como começar a explicar as nuances de um "mandamento" tão complexo em si mesmo.

II parte -

No caminho de volta, deixou-se guiar pelas ruas, sem rumo. Perdeu-se e já sem medo da perdição, começou a observar as casas, os transeuntes, a paisagem. Havia saído dos limites da cidade, estava em seu entorno, disso ao menos tinha certeza. Era uma estrada longa, porém estreita, de curvas acentuadas. Alphaville Pinheiros, apontava uma placa. Em seguida, passou por um extenso e demorado muro branco e logo depois deparou-se com uma casa branca de esquina e viu, atrás de um bananal que ficava no acostamento de chão-batido, uma placa com dizeres em chinês. E sem saber por que, parou o carro. Desceu, beirou a casa e deu de cara com um portão, através do qual podia ver criancinhas de olhos puxados brincando e passeando de bicicleta. Chamou-lhe a atenção um jardim atípico para os padrões da região, que ficava ao lado direito da casa, que era ladeada por uma vasta varanda, cuidadosamente adornada por plantas variadas. Um contraste intrigante para um pátio livre, cujo chão era desenhado em círculos, preenchidos por pedrinhas soltas, ora brancas, ora de um suave rosa pálido. A menininha mais pequena, olhando para cima, estendeu-lhe a mão e, sorrindo, apontou para uma pequena construção branca, que ficava do
lado direito do jardim. Na porta, os doces olhos espremidos miraram o chão, ao mesmo tempo em que os pequeninos pés lhe empurravam um par de chinelos. Chinelos chineses, disso também tinha certeza. Da casa grande, viu que caminhava em sua direção certamente o pai, usando túnica oriental, de linho branco. De olhos fixos naquele homem, deixou cair as seringas. Na outra mão, em punho suado e fechado, as agulhas.