sexta-feira, maio 26, 2006

Hit Parede, for books





Antecipo aqui o que sempre gosto de dizer: "Um bom título fala por si só". Digo isso, é bom explicar direitinho, para inaugurar aqui um cantinho para os livros, esses amigos sempre tão presentes e companheiros para quem aprecia o metiê. E em homenagem à Arte da Leitura, inicio aqui um novo tópico. O título, creio, fala por si só! :))


Hit Parede

"Os mistérios da Trindade", por Dany-Robert Dufour, Editora Companhia de Freud, ed. 2000.



Breves Comentários: O livro me chamou a atenção, quando de um congresso sobre Direito e Psicanálise, ocorrido em Curitiba, novembro de 2000. Um dos organizadores foi Norberto Irustra, nome ao qual já me referi num post antigo, entitulado 'A janela d'alma'. Nesse congresso, que é o mesmo que dizer congregação, tive o imenso prazer de ser apresentada a grandes idéias, como as professadas por Philip Julien, Enrique Dussel e Dany-Robert Dufour.

Bem, continuando com Dany...

I - Sobre o Dany

Dany-Robert DUFOUR nasceu na França em 1947. É professor na Universidade de Paris 8, onde leciona filosofia da linguagem, da estética e da educação, levando em conta a descoberta freudiana. Trabalha sobre as diferentes formas de simbolização, das quais isolou três: as formas unária, binária e trinitária, operantes em campos de pensamento extremamente diferentes. A publicação, na França, deste livro sobre o binário e o trinitário alcançou grande público entre os psicanalistas lacanianos. Serge Leclaire, em especial, deu ao trabalho uma calorosa acolhida.

II - A dedicatória do livro:


To you...

Eis um bonito trio,
e dizer que tudo isso só faz um,
e que este um não faz nada.

Becket, Nouvelles et textes pour rien


III - A introdução...

"Proponho-me, neste estudo, abordar um tema que irá parecer estranho aos espíritos científicos de hoje. No entanto, este tema parece-me introduzir considerações capitais na história da cultura. O homem é trinitário. Quem diz ‘trinitário’ evoca, decerto, o dogma central da religião cristã, o mistério da Santíssima Trindade. Mas esta árvore imponente e duas vezes milenar não deve ocultar a floresta: tentarei mostrar que a ‘trindade’ existe também, sob formas específicas, nos politeísmos e em outros monoteísmos. E mais: não somente ela é constante no campo narrativo, simbólico e religioso, mas é igualmente identificável como forma filosófica, lógica, lingüística, clínica... Existe um pensamento trinitário que conheceu múltiplas atualizações.
Poderíamos ver neste tema um simples pretexto para exibir uma erudição, divertindo-se com as delícias de um ‘comparativismo ampliado’. De fato, é uma questão de urgência que este tema vai encontrar: o homem trinitário está em vias de desaparecer. O velho homem trinitário, com efeito, está abdicando progressivamente de seus poderes, em benefício de um outro, mais ‘jovem’: o homem binário. O binarismo, apesar de mais recente, tampouco nasceu ontem. Ele é produto de um pensamento nascido na Grécia há mais de 2500 anos, cultivado inicialmente por pequenas sociedades marginais (o pitagorismo, o orfismo...), depois construído como sistema pelo platonismo e desde então levado a suas mais extremas conseqüências com uma coerência rigorosa. A forma binária que domina hoje é o resultado de uma longa evolução, no decorrer do qual forjaram-se as grandes categorias da razão com que se armou o Ocidente: o dualismo, a dialética, a causalidade e, nos dias de hoje, o cálculo binário... Na aurora do século por vir, parece que nosso século terá sido aquele em que o homem binário, depois de uma luta duas vezes milenar com o homem trinitário, apossou-se irreversivelmente das rédeas: não todas, mas quase. Hoje, o homem binário transforma o mundo graças à eficácia inscrita nas redes da binárias das ciências tecnológicas: serve-se da forma algorítmica, quintessência da binariedade (informática, inteligência artificial), para criar em todos os domínios (produção, administração, saúde...) processos artificiais de grande amplitude; ele sabe, de agora em diante, em que língua são escritos os programas naturais do ser vivo (biogenética) e, mal decifrou fragmentos desses programas naturais binários, neles começou a intervir (gênio genético).
Confiando-se ao pensamento binário, mais que ao pensamento trinitário, não se pode simplesmente dizer que o homem esteja hoje mudando de objeto de culto: ele não substituiu os deuses dos politeísmos ou o Deus único dos monoteísmos pelo culto recente das tecnociências binárias. Ele muda de mundo, muda o mundo, muda de representação do mundo, muda de espírito, muda de cultura. Mas, sobretudo, muda a si mesmo. Torna-se outro. Hoje, a enigmática profecia de Zaratustra, lançada há uns cem anos em direção ao nosso século, assume subitamente uma terrível atualidade, extremamente carregada de sentido:

(...) gosto de me assentar sobre igrejas em ruínas
Oh! Como não cobiçaria eu a eternidade (.)
Como caracterizar esses dois homens em luta?

(...) atualizações no decorrer

IV - Introdução, excertos...

"... Não tenho predileção alguma pelas revelações; ao contrário, suspeito dos famosos episódios catárticos da vida espiritual: a noite mística de Pascal de 23 de novembro de 1654... aquele dia de outono de 1882 em que Nietzsche, caminhando pelas montanhas da Riviera italiana do Levante, 'seis mil pés acima do homem e do tempo', descobriu a criança que carregava há dezoito meses, tal como uma 'fêmea de elefante': o Eterno Retorno... a noite do ano de 1946, quando Beckett, perdido na charneca irlandesa, à beira de um cais em plena tempestade, encontrava-se com a sua escrita: uma voz busca, na escuridão, alguém para fazê-lo confessar: sim, EU me lembro... Não sei por quê, mas só apreendo, desses acontecimentos infinitamente pungentes, seu lado grandiloqüente e quase cômico... Se, naquele dia, a coisa trinitária me aparecia, se eu emprestava minha voz ao Outro, é que nos meses precedentes havia trabalhado um pouco além das minhas forças. Ali, diante de Groix, fui tomado pelo riso; mais ainda, quando me voltou à mente um dos artigos do 'Dictionnaire abrangé du surréalisme, de Breton: 'Je suis le devoir du tri-Mystère, tri mystère du Finistère, des Trelendious e des trédious, des trébendious...' , etc. Os caminhos do SENHOR me seriam para sempre impenetráveis... Mais valia decidir esquecer... o tri-mistério do Finistério...

Cinco anos depois, aqui está este livro, entitulado 'Os mistérios da trindade' - notem bem: 'mistérios', no plural, 'santíssima' elidido e 'trindade', em minúsculas. Estou descansado, atualmente isento de qualquer presunção de depressão pós-parto - afecção que atinge numerosos animais intelectuais, do camundongo ao elefante, obrigando-os , após o parto, a se aferrarem de modo tragicômico a asserções tão decisivas quanto cacofônicas. Considero sempre suspeita a cegante claridade das revelações. Não fiz nenhum progresso pessoal na via da salvação eterna. Mas, durante cinco anos, não cessei de construir armadilhas para tentar capturar e identificar a coisa trinitária mal-entrevista no momento em que eu desviava o olhar. E devo dizer que as múltiplas verificações que efetuei, às vezes até a obsessão, para rastrear isso que havia então vagamente percebido, em lugar de me convencerem a cessar de correr atrás de uma quimera, levaram-me finalmente bem mais longe do que teria ido, se soubesse: hoje estou certo de que, se a trindade assombra nossas ciências da linguagem, é simplesmente porque ela se aloja na nossa própria língua. Em uma palavra, digo agora que a língua natural, aquela que vocês e eu falamos todos os dias, é habitada pela trindade . Em outros termos: queiramos ou não, como sujeitos falantes, somos sujeitos do trinitário.

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