terça-feira, junho 10, 2008
O mito da história.
Recentemente venho acompanhando um curso, onde se pretende estabelecer um paralelo entre os pensamentos psicanalítico e psiquiátrico. Deu-se início, assim, a uma exposição acerca da evolução histórica sobre o que se denominou as causas da loucura, buscando-se situar a sua origem ou a partir do grande outro, ou do somma - o próprio corpo enlouquecido, destacando-se que o deslocamento da amoralidade, como causa inédita da loucura, teria sido introduzido na dialética do pensamento apenas a partir da metade do Século XIX.
A par dessa exposição, foi inevitável que eu, já afeta às questões do que se abarcam pelo nome-cadinho de hinduísmo, fizesse uma interpelação: pois bem, evolução história a partir do pensamento ocidental, considerando que já estava familiarizada com as teorias que remontam a civilização desde as eras da coabitação entre os povos arianos, védicos, autocnes e dravidianos, que teriam florescido aproximadamente entre 2800 e 1900 aC., de acordo com as escavações dos sítios arqueológicos de Mohenjo-Daro e Harapa, localizados onde se situava o antigo Vale do Indo, no atual Paquistão.
Como aponta Carlos Alberto Tinoco (As Upanishads do Yoga, Textos Sagrados da Antiguidade, Ed. Madras, pág. 25/26), a partir da teoria adotada por Georg Feuerstein, os arianos védicos falavam um idioma do grupo indo-europeu, compartilhando muitas características étnicas com os povos da mesma família. Pertenciam ao mesmo grupo dos celtas, godos, persas e outros. Todos os povos que falam indiomas indo-europeus são descendentes dos chamados proto-indo-europeus, que podem ter existido, segundo Feuerstein, já no sétimo milênio antes da era cristã.
Assim é que quis vir até aqui para compartilhar exertos de um artigo entitulado "A Crítica de Hegel à Filosofia da Índia", elaborado pelo Professor Roberto de Andrade Martins (Diretor do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Unicamp), que se encontra encartado na obra do Prof. Carlos Alberto Tinoco(ob.cit., fls. 209/259).
"De acordo com Hegel, o pensamento oriental precede o surgimento da filosofia propriamente dita, mas não é filosofia. Na evolução do pensamento humano, toma-se como ponto de partida do Espírito a concepção de uma unidade amorfa, que Hegel compara com uma semente, um ser-em-si que é um ponto de partida, mas abstrato, simples, não desenvolvido, que ainda precisa realizar-se, no processo de vir a ser. E, para isso, faz-se necessário um processo de ruptura para com a unidade primitiva, que algo se faça distinto do restante, dando início a uma consciência da distinção. Passa-se, assim, do ser-em si para o estar-lá. De uma unidade passa-se a uma ruptura. O espírito chega ao estar-lá, ou seja, a consciência tem um objeto. Nessa separação surge a idéia de liberdade e de finalidades, de objetivos: o ser existe para si. Como um terceiro estágio, o ser-para-si torna-se consciente da unidade, e deixa o estado de consciência fragmentária. Mas essa consciência da unidade que o Espírito pode atingir não é um retorno à unidade simples primitiva.
Esse processo de evolução pode ser exemplificado na relação entre a filosofia e o mito religioso. O pensamento religioso primitivo tem por sua forma de representação o mito. A religião grega primitiva, por exemplo, tinha por ‘teoria’ a mitologia de seus deuses e heróis. A mitologia permitia aos gregos identificar-se com certas situações, ter certos sentimentos, mas não continha, propriamente, pensamentos. Por isso, como indica Hegel (H.F., p. 169-III),o surgimento da filosofia grega significa uma oposição e um choque com a religião popular. O pensamento filosófico começa a opor-se e desejar criar a sua própria base; o filósifo está lá, e a religião está em outro lugar. Por fim, durante a fase do neoplatonismo, os filósofos reconhecem a unidade fundamental do mito e da filosofia, já não combatem a religião, mas isso não significa uma volta ao princípio simples e indiferenciado: o pensamento continua a existir.
“... O pensamento manifesta-se inicialmente na religião, encontra-se nesse conteúdo substancial; não é, portanto, livre por si. Ele se fortalece; em seguida, capta a si mesmo como repousando sobre si, apoiando-se sobre sua forma e, não se reconhecendo na outra forma (do pensamento religioso), toma uma atitude hostil em relação a ela.
Em terceiro lugar, ele (o pensamento) se reconhece também nessa forma, e chega a reconhecer este outro como um movimento de si próprio”. (H.F., p. 169-I)
É com base nessa sucessão de etapas, reconhecendo em qual delas se situa o pensamento, que se pode determinar o seu valor.
“As primeiras filosofias são necessariamente simples, abstratas e gerais... As primeiras filosofias possuem o conteúdo mais pobre; nelas a idéia é menos determinada; elas ficam em generalidades que permanecem ocas”. (H. F., PP. 127-131-I).
O caráter de generalidade, em uma filosofia, é portanto negativo e primitivo, assim como a excessiva abstração.
(...)
Enquanto muitas pessoas procuram no pensamento antigo a mais elevada sabedoria, Hegel acredita que a filosofia está em evolução positiva constante e que o mais antigo é inferior ao mais moderno. (...) Dentro dessa concepção geral, portanto, a filosofia da Índia é considerada das mais baixas, por ser das mais antigas; corresponde a um período em que não se separa o pensamento religioso do filosófico, e portanto é anterior à criação de um pensamento filosófico autêntico e independente; e é um pensamento típico da fase de unidade amorfa do Espírito, caracterizando-se, portanto, por sua abstração, sua generalidade. Esse pensamento é então pré-filosófico. (...)
Hegel vê toda essa concepção como o resultado de uma imaginação desvairada e sem limites, que quer transformar tudo em divino, e que por isso mesmo rebaixa a idéia do divino. (...)
Hegel também vê nesse tipo de panteísmo uma irracionalidade extrema, pois nele algumas vezes o Absoluto é apenas o Uno, Brahmam, e os deuses são apenas partes; mas outras vezes cada uma das partes, ou uma delas em especial, é considerada como o próprio Absoluto, o que é absolutamente ininteligível.
Hegel vê na religião indiana um pensamento confuso e instável, em que nada é fixo, as formas e as idéias mudam como nuvens... (...)
Note-se que, ao descrever a doutrina do Yoga como filosofia, Hegel está apenas sendo irônico, e não contradizendo sua posição inicialmente exposta. Quando fala sobre a Índia, ele não está apenas expondo idéias; está fazendo retórica, e por isso é importante reproduzir sua linguagem, como estamos fazendo por meio dessas citações. Nelas, pode-se notar todo o desprezo pelos indianos:
“Eles renunciam a todo movimento, a todo interesse, a toda ligação. Cessam de visitar os amigos, renunciam a tudo o que é humano e mergulham em uma meditação silenciosa. Eles são venerados e nutridos por outros; eles permanecem sem falar, em um embrutecimento morno, com os olhos fechados ou fixando o Sol. Quando um indivíduo se mantém nessa abstração renuncia a tudo e está morto para o mundo, ele é chamado Yogin” (F.R, p. 136).
Hegel sabe muito bem que esses místicos eram conhecidos e admirados pelos gregos, desde a expansão de Alexandre Magno. Por isso, ele toma o cuidado de anular o efeito do conceito dos gregos. (...)
As sucessivas estruturas sociais que a humanidade desenvolveu em sua história são aspectos particulares da evolução do espírito; essa evolução é dirigida pela potencialidade interna do próprio Espírito, que quer conhecer-se e se realizar: ‘Pode-se dizer que a história universal é a representação do Espírito em seu esforço para adquirir o conhecimento daquilo que ele é”. (F.H, p 28). Ora, o Espírito é essencialmente livre, mas no início de sua evolução ele não tem consciência disso. Esse estágio mais baixo corresponde ao Oriente; “Os orientais não sabem ainda que o Espírito ou o homem como tal é livre em si. Como não o sabem, eles não o são” (F. H., p 29).
Essa descoberta da liberdade teria sido gradativa; os orientais, não se sabendo livres, deixavam-se dirigir por qualquer um; este um, o déspota, era livre, mas só ele. Na Grécia, teria surgido, depois da consciência da liberdade, mas esse conceito se aplicava apenas a alguns: os cidadãos. Os escravos não eram livres. Portanto, os gregos e os romanos sabiam apenas que alguns eram livres. Por fim, as nações germânicas teriam atingido, dentro do Cristianismo, a consciência de que o homem como tal é livre (F.H, p. 29, H.F, PP. 63, 73, 200-206).
No Oriente, há apenas um tipo de liberdade que Hegel chama de ‘liberdade substancial’ (H.F, 96). Os sujeitos se subordinam a leis e mandamentos externos, que não brotam da vontade dos indivíduos. ‘Os sujeitos são assim semelhantes a crianças, que, sem vontade nem julgamento próprios, obedecem a seus pais’, com fé e confiança cegas (F.H, p. 97). Os sujeitos evoluem em torno de um centro, de um soberano que os encabeça como patriarca. Esse patriarca deve aplicar e fazer obedecer a uma moralidade à qual os sujeitos precisam conformar-se. O fator moral é substancial. Sendo as leis exteriores ao sujeito, elas só possuem direito coercitivo (F.H, p. 105). O homem não tem a intuição da sua vontade própria, mas de uma vontade que lhe é estranha. Por essa sua índole, os orientais são facilmente dominados, e como os europeus, pelo contrário, são enérgicos e dominadores, ‘submeter-se aos europeus é o destino fatal dos impérios asiáticos’.
A estrutura das castas, na Índia, é a evidência clara dessa ordem artificial externa, que não brota dos sujeitos.
Para que a liberdade se realize, deve-se ultrapassar o egoísmo e as paixões, a vontade subjetiva; a ação livre se baseia no conhecimento da vontade universal, racional. Dessa forma ocorreria uma harmonização entre o Estado e o indivíduo (F.H, p. 52). Pelo pensamento, o indivíduo deve perceber-se como pessoa, ou seja, em seu ser singular, e ao mesmo tempo como uma coisa universal, em si, capaz de abstração, capaz de renunciar ao individual e conseqüentemente descobrir-se com algo de infinito aos desejos e aos interesses terrestres; mas o fim não é a liberdade e sim ‘é a negação da consciência, a morte espiritual e até física’ (F.H, p. 71).
O grau mais baixo de liberdade é, para Hegel, o dos chineses, em que, segundo ele, não haveria nenhuma consciência de individualidade: o povo seria uma massa amorfa, uma unidade indiferenciada de todos os indivíduos, submetidos a um imperador (F.H, p. 133). Na Índia, surge um certo progresso em relação à China, pois agora há uma diferenciação entre os indivíduos. No entanto, em vez de produzir liberdade real, essa diferenciação se torna algo fixo, uma lei da natureza, que se manifesta nas quatro castas...omissis... Como só os brâhmanes podem desempenhar as funções sacerdotais, a religião indiana discriminaria entre os vários tipos de pessoas, não sendo igualitária. (...)
Essa posição de Hegel não é causal nem um mero apêndice a seu pensamento filosófico. O centro da filosofia hegeliana é a teoria da História, e essa história é a evolução do Espírito. O Espírito sempre evolui, e jamais pode regredir. Todas as manifestações de um povo, em uma época, estão organicamente ligadas e exprimem o estágio atingido pelo Espírito naquela situação. Como a civilização da Índia precedeu à grega, e como o Espírito deve ter evoluído do seu estágio antigo, oriental, para o estágio grego – segue-se que o Espírito produzirá necessariamente manifestações mais elevadas na Grécia do que na Índia. E isso deve-se aplicar a todas as manifestações – filosofia, religião, arte, etc. – pois todas elas são apenas epifenômenos da evolução do Espírito uno. Dentro dessa visão, é necessário que a arte grega supere a indiana, que a moral grega seja superior à da Índia, e assim por diante. Em Hegel, os dados históricos e a teoria metafísica se harmonizam totalmente; e o caso da Índia não poderia ser uma exceção.
(...)
O intercâmbio entre a Índia e a Europa foi muito superficial e pobre, durante milênios. Na época em que se inicia a formação do espírito grego, não parece haver nenhuma comunicação entre a Índia e o Ocidente. Homero não fala sobre a Índia, e a primeira descrição mais extensa sobre essa região é encontrada em Heródoto, que, embora não tenha visitado a índia, baseou-se na descrição de um explorador, Scylax de Caryanda, que percorreu a região do Indo na época de Darius. Mas foi apenas por ocasião das expedições de Alexandre, o Grande, à Ásia, que se obteve um contato direto com os indianos –e, mesmo assim, é preciso lembrar que Alexandre apenas penetrou algumas centenas de quilômetros no território indiano, nas proximidades da parte alta do Indo. A história das expedições de Alexandre e a descrição das regiões por ele atingidas foram expostas, entre outros autores, por Arriano de Nicoméida, que se baseou em autores anteriores, com Megástenes (embaixador de Seleucos em Paliputra, aproximadamente 300 a C.). (...)
Não se observa na narração de Arriano nenhuma crítica ou menosprezo à estrutura social dos indianos. Ele toma as poucas e confusas informações que dispõe e as descreve com imparcialidade, como um bom historiador. Suas informações sobre os sofistas – que são chamados ‘bracmanes’ por outros gregos’ não são negativas; ele enfatiza, como foi visto, o caráter de dignidade profissional imposto aos adivinhos (com a pena do silêncio, após três tentativas de acerto fracassadas*); e de modo algum descreve essa casta como privilegiada. (...)
Note-se, portanto, que Arriano tem informações extremamente positivas sobre os indianos e sua ética – muito diferente das informações utilizadas por Hegel. E note-se que, por sua linhagem, ele não distingue a estrutura política da Índia da existente no mundo grego: ele se refere à existência de repúblicas entre os indianos.
É claro, portanto, que Hegel não se baseou em fontes gregas, como esta, para formar a sua opinião sobre os indianos.
O contato entre a Índia e o Ocidente foi rompido antes da era cristã. Durante muitos séculos, as informações eram as fornecidas pelos antigos, e essa situação somente se alterou com a viagem de Marco Pólo ao Oriente. Esse viajante, que percorreu a Pérsia, a Índia e a China em fins do século XII, realizou em sua volta à Itália uma descrição em grande parte fantástica do Oriente, que excitou a curiosidade dos europeus.
(...)
Passando a uma visão crítica, questiona a validade das conclusões feitas por Hegel.
“Tomemos, em primeiro lugar, os testemunhos sobre a religião da Índia. Esses testemunhos são provenientes de pessoas seguras de que sua própria religião (o Cristianismo) é a correta, e de que nada do que difira do Cristianismo pode ser verdadeiro. Para essas pessoas com o seu preconceito cultural, é impossível tentar captar o que existe de bom dentro da religião indiana. Talvez seja conveniente recordar algo da tática de conversão utilizada pelos portugueses na Índia. (...) O resultado foi que, no século XVIII, só havia católicos nas possessões de Portugal, na Índia. Jacolliot viu pessoalmente, em Goa, alguns indianos cristianizados pelos portugueses: um deles se arrastava, pois seus membros tinham sido deformados pelas máquinas da Inquisição; outro ao tinha língua nem olhos; um terceiro tinha as mãos cortadas; e o quarto tinha seus pés quebrados pelas prensas da Inquisição. Certamente se pode criticar os fanáticos indianos que se jogavam sob as rodas do carro do ídolo; mas pelo menos essa morte era voluntária; muito pior é o fanatismo dos cristãos que matavam e aleijavam os indianos, simplesmente para que mudassem de religião. Antes de Hegel, Voltaire já estava bem consciente dessa limitação das narrativas européias e da injustiça cometida contra os indianos. No seu Dicionário Filosófico, verbete bracmanes, brames, Voltaire se refere aos indianos dizendo:
“Seus ritos, seus pagodes, provam que tudo era alegórico entre eles; eles representavam ainda a virtude sob a forma de uma mulher que tem dez braços, e que combate os pecados mortais representados por monstros. Nossos missionários não deixaram de tomar essa imagem da virtude pela do diabo, e de afirmar que o diabo é adorado na Índia. Jamais fomos até esse povo senão para nos enriquecer e para caluniá-los”.
*explicação introduzida por mim, a partir de trechos suprimidos na transcrição.
** Post em homenagem à minha querida irmã 'chiquita', que hoje hace cumpleaños! :))
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário