quinta-feira, março 01, 2007

Cadios

Ao me despedir da justa metade do ser balzaquiana, brindei minha passagem com uma brincadeira de palavras. Não quis passar minha trajetória em brancas nuvens, sem uma contribuição sequer para a minha língua.

Foi em um sábado fim-de-tarde, quando peguei para me distrair um livro em cima de um balcão de bar, que naquele instante jamais poderia imaginar que faria parte da minha vida: as 101 coisas que você precisa fazer antes de morrer. Foi ali que o acaso abriu na página que desafiava: inventar uma palavra. Pedi o livro emprestado ao dono do boteco-restauranteria, mas se não devolver não tem problema, a livraria não cobra, deixa livros aqui e acolá, trocados mensalmente, para divulgar o hábito da leitura.

Inventar uma palavra é fácil. O que distingue esses inventores de nomes feito Sheakspeare, porém, é o dom de despertar no interlocutor um sentimento genuíno que o faça repetir: a mesma palavra. E de tanta repetição dá-se o fenômeno da criação e também de mutação da língua.

Eu quis escrever cadios, mas essa palavra não existia para adjetivar esses tais calafrios. Talvez existisse alguma outra para dizer o mesmo, uma palavra terminada em ditongo 'io'? Tentei vadio, mas voltei ao cadio, pois queria algo mais bravio.

Palavra nova, sensações antigas: aqui, um sentimento cadio descrito por Mário de Sá-Carneiro, no exato contra-ponto de dois poemas. Uma sensação incerta, não se sabe direito o que a provoca e como defini-la, mas de alguma forma sabe-se a certa, como uma estrela, a nos indicar o rumo.

Confira.


Além-tédio

Nada me expira já, nada me vive —
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital…
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu… Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios…

Mário de Sá-Carneiro



Ápice

O raio do sol da tarde
Que uma janela perdida
Refletiu
Num instante indiferente —
Arde,
Numa lembrança esvaída,
À minha memória de hoje
Subitamente…

Seu efêmero arrepio
Ziguezagueia, ondula, foge,
Pela minha retentiva…
— E não poder adivinhar
Porque mistério se me evoca
Esta idéia fugitiva,
Tão débil que mal me toca!…

-Ah, não sei porquê, mas certamente
Aquele raio cadente
Alguma coisa foi na minha sorte
Que a sua projeção atravessou…

Tanto segredo no destino de uma vida…

É como a idéia de Norte,
Preconcebida,
Que sempre me acompanhou…

Mário de Sá Carneiro

Quando invento, não me rendo à arte solitária. Servem-me de inspiração Sheakspeare e, para um aproach mais tupiniquim, lembro do crackear, verbo inventado por Oswald de Andrade, licença poética para ficar na memória.


E para terminar, depois da poesia, fique com um pouquinho de antropofagia, por Oswald de Andrade, cujo manifesto antropofágico você poderá ler na íntegra no post 'A saída antropofágica da poesia'.

Memórias Sentimentais de João Miramar

Verbo Crackar*

Eu empobreço de repente
Tu enriqueces por minha causa
Ele azula para o sertão
Nós entramos em concordata
Vós protestais por preferência
Eles escafedem a massa


Sê pirata
Sede trouxas


Abrindo o pala
Pessoal sarado.

Oxalá eu tivesse sabido que esse verbo era irregular.

(* verbo inventado, baseado no crack da Bolsa de Nova York em 1929)

fontes: www.wikedia.com e http://www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/index.html. As justas referências ao autor do livro que me fez tomar a decisão de ficar com o termo 'cadio' virão oportunamente, assim que localizar onde é que larguei o talzinho... do livro.

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