segunda-feira, abril 02, 2007

O princípio da legalidade para leigos - Parte II

Um certo silêncio depois, a curiosidade feminina resolveu personificar uma pergunta:

- Por que o silêncio?
- É que ando ocupado.
- Com o quê?
- Coisa séria.
- E como se chama essa coisa séria?
- Na verdade não é só uma coisa séria, são duas.
- Ah, por isso o silêncio foi mais demorado?
- Engraçadinha. Estou ocupado. Questão de patentes. E também de santidade.
- Como?
- Patentes, tenho que fazer uma defesa e preciso de mais detalhes técnicos.
- Putz, espero que você melhore rápido.
- Melhorar do quê? Do que você está falando ou já mudou de assunto de uma hora para outra como sempre, só para me enlouquecer?
- Não foi você quem disse que estava ocupado com uma patente? Ou será que eu não entendi direito?
- Bem, só conto se você prometer que não vai rir.
- Prometido, sempre prometido.
- Olha lá, não vale rir que não estou de bom humor!
- Por que você insiste sempre em duvidar, já não provei isso várias vezes, que mantenho a minha palavra?
- É que você me enlouquece falando para eu melhorar, justo quando uma das razões da minha ocupação se resume a uma diarréi@!
- Como?
- Questão de registro de marcas, de idéias, de patentes... duas pessoas brigando por conta de um domínio na internet grafado diarrei@. E para complicar ainda mais, meu cliente está prestes a concluir o desenvolvimento de um produto, que quer chamar justo de diarrei@.
- Depois eu é que faço confusão... quando você é que não sabe dar direito a explicação!
- Para evitar mais confusão, acho melhor voltar para o meu silêncio...
- Espera, só um pouquinho, já lembro de uma coisa importante que quero dizer para ajudar a esclarecer essa celeuma toda.
- Não me venha com asneiras.
- Lembrei! Li dia desses uma matéria na 'Superinteressante', sobre o inventor da Privada!
- Será que vou ter que repetir? Meu problema é de patente, não de privada...!!!!!!
- Escute: John Harington foi um sujeito que queria passar para a posteridade como um grande escritor, mas o destino revelou que o seu talento era mesmo ser um grande inventor. Ou quase isso. Lá pelos idos 1586, depois de cair em péssias graças com a Rainha Elizabeth I e perder o direito de frequentar o Castelo de Greenwich, perto de Londres, John resolveu mandar a rainha e seus súditos para as cucuias e foi viajar pela Europa! Passou dez anos dedicando-se aos encantos das moças da Côrte, italianas e austríacas em especial. De volta ao lar-uma propriedade rural, bem de família-, dedicou-se por um bom tempo ao pleno ócio e, distraindo-se na mesmice, começou a desenhar uma geringonça mecânica para a eliminação de dejetos humanos. Em dois ou três dias criou o primeiro modelo do que hoje se conhece por privada. Dizem que com essa engenhoca ele recuperou momentaneamente as graças da Rainha, mas não soube aproveitar a chance de voltar aos salões da nobreza. Já em suas primeiras reaparições à corte, declamou um poema satírico de sua autoria. Uma poesia que ironizava impiedosamente não só os nobres, mas também a própria realeza em pessoa, nas partes que aludia à sua rotina de evacuação intestinal. Foi o fim do seu projeto de ascenção social. Porém houve um fruto: a invenção da privada lhe rendeu o título de Sir, antes de recair no mau gosto da nobreza. Morreu em ostracismo aos 51 anos de idade, em 1616. Dizem alguns historiadores enfezados que atribuir-lhe a invenção é o mesmo que dizer que Leonardo da Vinci criou o helicóptero, pois foram apenas os pioneiros teóricos e o que importa é realizar com a teoria para se falar em patente! Essa, na realidade, só foi registrada por Alexander Cummings, no ano de 1775. Os ingleses, porém, renderam a devida homenagem ao primeiro inventor: afirmam muitos que a gíria John, eufemismo para privada, é uma justa reverência ao verdadeiro criador!
- Antes de ir-me, só quero fazer uma pergunta para a senhorita sabichona: por que falar com você dá sempre nisso?
- Nisso o quê?
- Nessa confusão toda, puta merda! Tchau!

- Ei, seu John, não vai embora assim. Faltou o Santo...
- Santo? Não vou dizer o nome do meu cliente, não insista. Sigilo profissional.
- Você disse que estava ocupado com patentes e santidade...
- Ah, isso? Estava escrevendo e fiquei na dúvida quando lia uma referência a Santo Tomás de Aquino. Não seria São Tomás de Aquino?
- A regra gramatical é clara: nomes de santo começados por consoante levam São e os iniciados por vogais levam Santo. E sei mais: sei também que essa regra tem uma exceção: ela não vale quando se trata de uma consoante não pronunciada (morta), como no caso de São Hilário.
- Isso aqui é que está ficando hilário, isso sim. E agora, será que até Santo está virando uma exceção?
- Li dia desses alguma coisa a respeito... espera aí... lembrei! Foi na "Veja", um tal de Reinaldo, se não me engano... Disse que não há nada de errado com Santo Tomás de Aquino, pois chamá-lo assim foi consagrado pelo uso e, justo por isso, deixou de ser errado para virar certo. Santo Tomás agora também faz parte da norma culta...
- Tem lógica, já que São é forma apocopada de Santo.
- E escrever por extenso não é pecado. Pode ser chato, mas não é errado para a língua culta...
- São Santo, dai-me paciência!
- Não entendi a sua graça. Explica?
- Agora não dá, antes preciso refletir sobre a expressão 'tende piedade, ela sabe o que faz?'


-Ela quem?
-Ela, ele, sei lá, o que importa afinal? O que importa é que quem saiba, saiba o que faz!
- Santo sempre sabe.
- Como você pode saber?
- Se é Santo sabe. E não só sabe, age de acordo com esse saber!
- Nem todas as biografias de Santos são assim tão repletas de santidades. Não a vida inteira. Teve muito santo que só foi santo depois de arrependido de suas próprias errâncias. Lembro bem das minhas aulas de catolicismo no colégio, quando era guri.
- Mas aí é outra coisa.
- Qual a coisa, ô dona Coisa?
- Eu não me chamo coisa e você sabe bem disso!
- Eu sei, se você não fosse uma mulherzinha metidinha a coisa sabichona, mas que no fundo tanto gosto, eu lhe dava agora um nó-de-gravata, de tanto que você consegue aporrinhar a minha santa paciência!
- Viu? Uma coisa é querer ser Santo, outra coisa é conseguir sê-lo...
- Mas isso é tão óbvio... Canso de você complicar coisas tão óbvias...
- Eu sei, mas o óbvio é o mais difícil de alcançar. E isso eu não sei porque direito ainda. Será que o sabichão sabe?
- Pelo menos você não me chamou de sai-bichão, tampouco sai-bichona, que alívio!
- Antes não fazia diferença alguma se era ela ou ele, mas agora o alívio depende dessa mesma tal diferença? E depois sou eu quem enlouquece você...

* Referências sobre a história da invenção da privada e o registro de sua patente foram retiradas de reportagem publicada na Revista Superinteressante, edição 237, março/2007, Editora Abril, pág. 50, texto por Álvaro Oppermann. A informação sobre a forma correta Santo Tomas de Aquino se encontra em nota da Revista Veja, Editora Abril, desta semana.

Nenhum comentário: