segunda-feira, junho 09, 2008

Os nós do Islã.




Hoje deparei-me com esse texto, que me foi enviado pelo amigo de sempre, o Murilo, em algum dia de 2007. Após três dias de intensas e maravilhosas discussões sobre o "Caçador de Pipas", livro de Khaled Rosseini, esse artigo me parece providencial, motivo pelo qual o compartilho aqui.

Disseminação da consciência ou enodoamento de uma religião?




Por GARY LEUPP, em 10.10.2007.

Com muita fanfarra, uma coleção de ideólogos da extrema direita apoiada por dinheiro de "instituições de pesquisa interdisciplinar" da direita estão proclamando uma "Semana da Consciência do Islamofascismo" nos campus universitários a partir de 22 de outubro. É um esforço calculado para vilescer o islã em geral, colocar as Associações de Estudantes Muçulmanos - Muslim Student Associations na defensiva, e gerar apoio para mais ação militar dos Estados Unidos no mundo islâmico.

Os muçulmanos constituem cerca de um quarto da população do mundo e cerca de dois por cento da população dos Estados Unidos. Entre eles incluem-se membros de muitos grupos étnicos. Os árabes são minoria no mundo muçulmano; os mais populosos países muçulmanos (Indonésia, Paquistão, Bangladesh) são não-árabes. O mundo muçulmano é complexo e dividido, religiosa (em sunitas, xiitas e outros grupos) e politicamente. Há monarquias absolutas muçulmanas, monarquias constitucionais, estados seculares e repúblicas islâmicas. Para entender esse mundo, é preciso examiná-lo desapaixonadamente, evitando estereótipos.

Entretanto, imediatamente depois do 11/9, a administração Bush, não tendo paciência com "nuanças," lançou-se à tentativa de vincular a república secular do Iraque aos fanáticos religiosos (em sua maioria sauditas) da al-Qaeda. Ela acreditou que, tendo sido atacados pela al-Qaeda, a maioria dos estadunidenses apoiaria um ataque contra o alvo, completamente não vinculado àquela organização, do Iraque. Mas o que tinham em comum a al-Qaeda e o Iraque? A primeira odiava esse último por sua supressão do ativismo religioso islâmico, e sua tolerância em relação aos cristãos e a outras minorias religiosas. De algum modo, entretanto, Bush conseguiu associar os dois, de modo que mesmo nos dias de hoje cerca de um terço dos estadunidenses acredita que Saddam estava envolvido no 11/9. As pessoas que se situam na direita cristã inclinam-se mais para adotar esse ponto de vista, e para dar guarida a sentimentos tais como aqueles expressos pela extremista de direita Ann Coulter na National Review de 13 de setembro de 2001: "Nós deveríamos invadir os países [muçulmanos], matar seus líderes e converter seus povos ao cristianismo." Mas essas pessoas foram acrescidas de neoconservadores secularistas como Norman Podhoretz que pediu a Bush que bombardeasse o Irã, que ele chama de "atualmente o principal centro da ideologia islamofascista."

O Irã é outro país que não tem vínculo com o 11/9 ou com a al-Qaeda, e que é, na verdade, inimigo mortal dessa última. É, no entanto, outro estado muçulmano na mira da administração Bush, juntamente com a Síria -- embora esta seja outro país muçulmano muito diferente. É nesse contexto, e no de decepção generalizada com a Guerra do Iraque, que os neoconservadores radicais estão promovendo essa "Semana da Consciência do Islamofascismo." É produto do esforço criativo de David Horowitz, "ex-esquerdista" profissional e comentador da Fox News, proponente da Guerra do Iraque, que chamou uma manifestação de oposição à guerra em 2002 de " 100.000 comunistas," e autor de um livro atacando professores universitários como sendo "de extrema esquerda" em geral. Ele fundou (como não-estudante em seus anos 1960) a "Estudantes Pela Liberdade Acadêmica" - "Students for Academic Freedom" que insiste em que estudantes conservadores são tratados iniquamente na academia. Horowitz é conhecido por sua publicidade nos anos 1990 em jornais de estudantes protestando contra os que preconizavam indenizações pela escravidão, declarando que os africanos-estadunidenses deveriam ser gratos por estarem aqui. Em 2003 ele denegriu Rachel Corrie, morta por um buldôzer militar israelense quando protestava contra a demolição de uma casa em Gaza, chamando-a de apoiadora de "terroristas." Ele não está empenhado em disseminar "consciência" e sim em focalizar seletivamente aspectos do mundo muçulmano que possam produzir simpatia para mais "mudança de regime" patrocinada pelos Estdos Unidos.

A estratégia de uma "Semana da Consciência do Islamofascismo" consistirá aparentemente em enfatizar a desigualdade entre os sexos no mundo muçulmano. Os estudantes participantes convidarão grupos de mulheres e grupos de lésbicas a se envolverem, esperando construir uma frente unida de indignação geral com a opressão islâmica de mulheres e gays. Obviamente, no mundo muçulmano o estatuto das mulheres varia; no Iraque secular de Saddam, as mulheres não eram sujeitas a nenhum código de vestimenta, e trabalhavam no governo, enquanto que sob a ocupação dos Estados Unidos seu estatuto (e o dos gays) despencou. Há uma grande diferença entre a situação das mulheres na Síria e na Arábia Saudita. Lembram-se de como Laura Bush fez grande alarde a respeito da burqa no Afeganistão, implicando em que a invasão dos Estados Unidos de alguma forma a removeria? Ela ainda é vestida pela grande maioria das mulheres afegãs. Ela não foi inventada pelo Talibã e não desapareceu apenas porque os Estados Unidos empossaram um regime cliente.

O próprio termo "islamofascismo" -- popularizado por Eliot Cohen (adjunto de Condi Rice), Frank J. Gaffney e outros escritores neoconservadores na National Review, e usado pelo Presidente Bush em discursos ameaçadores -- é altamente problemático. É definido no New Oxford American Dictionary como "expressão controvertida que iguala alguns movimentos islâmicos modernos com os movimentos fascistas europeus do início do século vinte." Todo ano eu ensino a respeito do fascismo japonês nos anos 1930 e 1940. Discuto diferentes definições de fascismo, enfatizando como algumas parecem adequar-se ao caso japonês, enquanto que outras não se ajustam a ele, o que leva alguns eruditos a mesmo rejeitar a aplicação do termo. Mas há pouquíssimas definições de fascismo aceitas na erudição majoritária aplicáveis ao mundo islâmico em geral ou até a países específicos. Qual seria a "ideologia" unificadora dos alvos díspares desta administração -- os fanáticos da al-Qaeda e os fanáticos sunitas do Talibã, os baathistas do Iraque e da Síria, a mullocracia xiita da "democracia dirigida" do Irã -- se não o denominador comum do islã? Não é possível, entretanto, decentemente (*), atacar-se o islã em geral e, por isso, apelida-se-o de "islamofascismo."

(*) in polite company - também, in polite society - Em companhia de gente fina, isto é, de maneira aceitável por pessoas civilizadas. Ver Macmillan. Parece-me que em português recorremos a um conceito interiorizado em vez de social: 'em sã consciência.'

Aqueles que procuram vincular o islã contemporâneo ao fascismo europeu enfatizam sentimentos de vitimização e sonhos de restauração da glória perdida. Quem, porém, no mundo muçulmano, é o líder carismático? Bin Laden? Os baathistas e xiitas o odeiam. Onde está o partido baseado nas massas? Onde estão o ultranacionalismo ou o racismo? O islã enfatiza a igualdade das pessoas diante de Deus, enquanto que o Corão explicitamente declara que cristãos e judeus probos entrarão no Paraíso.

A intenção real, aqui, é acoplar ao "islã" um epíteto poderoso, destituído de conteúdo analítico, conjurando-se imagens de um passado universalmente detestado. Bush insiste em comparar o constitucionalmente fraco presidente iraniano Ahmadinejad, líder de um país que em um século não atacou outro, com Hitler (como o pai dele comparou Saddam a Hitler). Analogamente, os proponentes do conceito de "islamofascismo" querem usar as emoções em vez de realmente disseminar "consciência." Suas analogias históricas são absurdas, e sua planejada semana é mais do que uma afronta aos muçulmanos. É um insulto à inteligência de todos".

E, para continuar interrogando, como bem arrebatou Cristiano Paixão, em sua exposição feita em 7.6.2008, em Curitiba, sobre "Terrorismo: memória, história e religião - o islã em perspectiva diacrônica", é de bom alvitre inteirar-se sobre os eventos que passaram à história como o renascimento espanhol, iniciado em 1492, culminando, em 1619, com o fim da diáspora de judeus e muçulmanos do território espanhol, que teve início com o Decreto de Alhambra. E para quem tiver bastante estômago, pode buscar informações sobre a forma como morriam os condenados por pena de traição... que era bem pior do que a pena destinada a quem era condenado por assassinato: fogueira para as mulheres e decaptação para os homens. Mas a pena de traição impunha rituais muito mais compatíveis a quem se atrevia não a ultrajar apenas um corpo, mas uma idéia, uma crença, uma visão de mundo. E, a partir daí, podemos entender melhor esse retorno da violência recalcada. Recalcada, mas impossível de ser contida, nos mostra reiteradamente a história.

Convém, por fim, observar que esse namoro nos precede de há muito, como se bem pode perceber das ruínas tão genuinamente romanas, para o lado de lá. Tema para um post a seguir...




Gary Leupp é Professor de História na Tufts University, e Professor Adjunto de Religião Comparada. É autor de Servos, Trabalhadores no Comércio e Trabalhadores Braçais nas Cidades do Japão dos Tokugawa Servants, Shophands and Laborers in in the Cities of Tokugawa Japan; Cores Masculinas: O Significado do Homossexualismo no Japão dos Tokugawa Male Colors: The Construction of Homosexuality in Tokugawa Japan; e Intimidade Inter-racial no Japão: Homens Ocidentais e Mulheres Japonesas, 1543-1900 Interracial Intimacy in Japan: Western Men and Japanese Women, 1543-1900 . É também colaborador da implacável crônica de CounterPunch das guerras no Iraque, Afeganistão e Iugoslávia, Cruzadas Imperiais Imperial Crusades.


Ele pode ser encontrado em: gleupp@granite.tufts.edu
(Esta coluna apareceu originalmente no Diário da Tufts - Tufts Daily.)


http://www.counterpunch.org/leupp10102007.html - tradução feita a partir do orignal, em inglês, por Murilo Paes Leme.

Fotos por Ketty El Hajjar, no Líbano, abril de 2008.


1ª foto: Biblos (rua de árvores)
2ª foto: Bcharre (montanha, Igreja e neve)
3ª foto: Balbeck (templo)



PS: Logo que terminei a reprodução deste artigo, fiquei à procura de algumas imagens para ilustrar a diversidade de crenças e culturas que coexistem em algum lugar além do horizonte. Lembrei-me das fotos que havia recebido como recordação da viagem de uma amiga à terra de seus ancestrais. E, em seguida, uma outra amiga presenteou-me virualmente com as imagens de uma mesquita - sendo essa, talvez, a primeira vez que eu tenha tido a oportunidade de vislubrar o interior de um templo de oração do islã.
(infelizmente, porém, não consegui, ainda, fazer o link - o qual espero que esteja aqui em breve).

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