quinta-feira, agosto 25, 2005

Aprendendo a viver, por Clarice Lispector

Aprendendo a viver
Clarice Lispector

Thoreau era um filósofo americano que, entre coisas mais difíceis de se assimilar assim de repente, numa leitura de jornal, escreveu muitas coisas que talvez possam nos ajudar a viver de um modo mais inteligente, mais eficaz, mais bonito, menos angustiado.

Thoreau, por exemplo, desolava-se vendo seus vizinhos só pouparem e economizarem para um futuro longínquo. Que se pensasse um pouco no futuro, estava certo. Mas “melhore o momento presente”, exclamava. E acrescentava: “Estamos vivos agora”. E comentava com desgosto: “Eles ficam juntando tesouros que as traças e a ferrugem irão roer e os ladrões roubar”.

A mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente infeliz agora, tome alguma providência agora, pois só na seqüência dos agoras é que você existe.

Cada um de nós, aliás, fazendo um exame de consciência, lembra-se pelo menos de vários agoras que foram perdidos e que não voltarão mais. Há momentos na vida que o arrependimento de não ter tido ou não ter sido ou não ter resolvido ou não ter aceito, há momentos na vida em que o arrependimento é profundo como uma dor profunda.


Ele queria que fizéssemos agora o que queremos fazer. A vida inteira Thoreau pregou e praticou a necessidadede de fazer agora o que é mais importante para cada um de nós.

Por exemplo: para os jovens que queriam tornar-se escritores mas que contemporizavam – ou esperando uma inspiração ou se dizendo que não tinham tempo por causa de estudos ou trabalho – ele mandava ir agora para o quarto e começar a escrever.

Impacientava-se também com os que gastam tanto tempo estudando a vida que nunca chegam a viver. “É só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos que começamos a saber”.

E dizia esta coisa forte que nos enche de coragem:“Por que não deixamos penetrar a torrente, abrimos os portões e pomos em movimento toda a nossa engrenagem?”Só em pensar em seguir o seu conselho, sinto uma corrente de vitalidade percorrendo meu sangue.

Thoreau achava que o medo era a causa da ruína dos nossos momentos presentes. E também as assustadoras opiniões que nós temos de nós mesmos. Na opinião dele “o que um homem pensa a respeito de si mesmo determina, ou melhor, revela seu destino”.

“Creio”, escreveu, “que devemos confiar em nós mesmos muito mais do que confiamos”. E repetia mil vezes aos que complicavam inutilmente as coisas – e quem de nós não faz isso? – como eu ia dizendo, ele quase gritava com quem complicava as coisas: simplifique! simplifique!

Clarice Lispector - Jornal do Brasil (dezembro de 1968).

Com todo o respeito à verdade que acredito que esse dito porta, só me resta perguntar: quem de nós, na sua integralidade, faz isso? Ah, os iluminados, alguém poderia me responder... Bem, se você não vai além do que o momento lhe permite, enquanto isso aprenda com o exercício da compaixão e do contentamento por ser quem você é, do melhor jeito que puder ser.

2 comentários:

Anônimo disse...

Sorry, mas é exatamente isso o que o texto diz!

Cláudia disse...

Clarice pergunta quem de nós não complica as coisas, sim! Ao que acresci que talvez os iluminados não tenham lá essa falha... mas os humanos, ah... parece que nos acostumamos a pensar que essa condição nos é inerente. E quando se fala em falha, pode-se deslizar para a falta, o que fundamenta o desejo. Condição intrínseca à constituição psíquica do sujeito, é esse algo mais que nos move justo por não estar presente, colocando-se no lugar do vir a ser.

Hoje mesmo pensava sobre o termo "presente", o qual não se refere apenas ao tempo atual, mas também àquilo que se oferece com o intento de agradar ou mesmo à qualidade de se ter um dom. O que me remeteu a lembranças especiais, onde o tempo parece ser eterno, justo por perpetuar a intensidade que se atrela a esse viver, distanciado do que poderia ou poderá, focado apenas na entrega do momento, de corpo e alma.

O comentário que fiz ao texto foi pensando, entretanto, nos momentos em que a razão impera, buscando imprimir um freio no agir impulsivo. Várias são as obrigações que assumimos ao longo da vida que nos impedem de dedicar-nos exclusivamente àquilo que às vezes imaginamos ser ideal. Situações que podem apreender em si um sentimento de culpa. E foi isso que talvez eu não tenha encontrado no texto: a compaixão pelo si mesmo, ao invés de alimentar sentimentos que provêm de uma certa culpa, quando nos apercebemos aquém desse ideal. Talvez essa seja uma concepção da condição da dita 'normalidade' de todos nós.

Uma das concepções, considerada a mudança dialética dessa perspectiva, nessa nossa modernidade. Tempos perversos, diante da visão então vigente, como aponta Charles Melman, em "O Homem sem gravidade". Tema para um post futuro. Antecipo aqui uma colocação do livro (pás. 35): "O desejo, hoje, se mantém mais pela inveja que em referência a um suporte ideal. Em outras palavras, é sobretudo dependente da imagem do semelhante enquanto o semelhante possuidor do objeto ou dos objetos suscetíveis de suscitar minha inveja. O desejo, normalmente, é organizado por uma falta simbólica. Mas a falta que se instala na relação com o semelhante é apenas imaginária. Para ser simbólica, seria preciso estar relacionada a alguma instância Outra na qual encontraria sua justificação. Se o desejo não tem mais como suporte um referente Outro, só pode se nutrir da inveja que a posse pelo outro do signo que marca seu gozo provoca. Torna-se, então, um simples acidente social, que, aliás, a paridade deve reparar; pois é escandaloo que haja os que têm mais que outros. Um grande jornal vespertino francês publicou as somas que os dirigentes de grandes empresas recebem graças a suas stock opções. Ele as publicou com a vontade de jogar essas pessoas ao pasto de seus leitores: "Vejam vocês! Que injustiça! Eles ganham tanto dinheiro enquanto vocês têm um salariozinho...". É a inveja mesma provocada por esses rendimentos que está em jogo, a questão não é julgá-los. O que é escandaloso é que possa haver inveja e, então, simultaneamente, desejo. Seria preciso chegar a expurgar a inveja! - E se, efetivamente, se chegasse a erradicar a inveja? - Não creio que se chegue a isso, jamais. Basta um nadinha que seja de diferente para provocar a inveja. O que é espantoso é o caráter muito primitivo, muito estúpido do processo. Em lugar de respeitar o fato de que haja inveja, de que haja desejo, o que, afinal, é o grande motor social e o grande motor do pensamento, assistimos hoje a uma denúncia de todas as assimetrias em proveito de uma espécie de igualitarismo que, evidente, é a imagem mesma da morte, quer dizer, da entropia enfim realizada, da imobilidade".

Ah, tecer essa colcha de retalhos sempre me apraz, uma pena que exija um tempo que não encontro, já é hora de ir-me :))

Obrigada pela intervenção, são sempre bem-vindas.

Cláudia :))