Hoje vou contar a história de uma professorinha, lá por volta dos seus 19 anos, quando a década de cinqüenta dava as boas vindas à de sessenta.
Professorinha nascida no bairro do Seminário e que morava bem ali no seu final, onde acabava o ponto-do-bonde e boa parte do que se concebia à época como os contornos da cidade de Curitiba. Cresceu moleca e cheia de vida, com um brilho no olhar que nem mesmo o passar dos anos conseguiu apagar, dando o tom da avidez peculiar daqueles que lutam em busca da concretude dos sonhos.
Recém-formada, dava algumas aulas particulares além das que ministrava na Estadual D. Pedro II, onde anos mais tarde continuaria a lecionar, já com seus três filhos, que vieram a ser alunos não só dessa escola primária, mas da sabedoria da professorinha.
A segunda proposta de emprego lhe foi oferecida pelo padre da comunidade do Barigüi, naquela época arredores da cidade que já foi conhecida um dia como Nossa Senhora da Luz do Pinhais. E foi ali, numa escolinha voltada para os filhos das gentes mais distantes, que teve o seu primeiro desafio: a pior sala, daquelas que professora nenhuma queria pegar, tal era a desordem e a insubordinação daqueles pestinhas.
A moça bonita chegou no frescor da sua juventude para o seu primeiro dia de aula e assim que entrou na sala a única coisa que pode fazer para conter o medo e a insegurança foi sentar desapercebida na mesa da professora, tamanho era o alvoroço e a algazarra da terrível molecada. Corriam e gritavam com aquela liberdade de criançada solta e sem rédea, comprometida de corpo e alma com a brincadeira da vida.
A única coisa que a professorinha conseguiu fazer por uma boa meia hora, talvez mais, foi ficar ali sentada, cotovelos na mesa, mãos segurando a cabeça, olhos fechados, na tentativa de vislumbrar uma saída para aquela situação que não fosse a porta. E rezava, rogando ajuda a Quem tudo pode.
Permaneceu quietinha, mas com fé, até que no meio da balbúrdia algumas frases começaram a se fazer ouvir: ei, psiu, a professora já está aí! É???? Mas ninguém a viu entrar!? O que será que ela tem? Será que está bem? Seeeenta!!!!
Os alunos foram aos poucos tomando seus lugares, até que algum tempo depois o silêncio tinha dado o ar da sua presença. Foi então que a professorinha levantou a cabeça e muito cordialmente, com um sorriso estampado na face, disse: boa-tarde meus queridos alunos! Tudo bem com vocês? Agora que vocês já se cansaram de brincar, vamos começar?
Foi com esse mesmo tom acolhedor que pediu, depois de se apresentar, que cada um fosse falando de si. Um por um. Ouviu que alguns era filhos de agricultores, outros filhos de pais que brigavam muito entre si. Havia também os que faziam as vezes de pais, cuidando dos irmãos mais novos, para que alguma comida viesse para alimentar o lar.
Enquanto escutava, a professorinha foi percebendo as agruras da vida daquelas crianças, todas muito humildes. Quando terminaram, ouviram a professorinha dizer que eles eram todos muito bonitos. O espanto foi geral: nóóós, booonitos????? Todas as professoras daqui dizem que somos feios, mal-educados, uns pestinhas, que somos um verdadeiro horror!? Respondeu então a professorinha: olhem só para a carinha de vocês, para os traços dos olhos, para o nariz, para o sorriso. Cada um tem a sua beleza particular. Vocês podem não ser bem tratados, mas bonitos são! É mesmo, professora!!!!! A gente pode não ser bem tradado, mas quem disse que a gente não é bonito? Pois é, mas vocês precisam aprender a cuidar de si, a pentear os cabelos, a escovar os dentes e embaixo das unhas, lavar direitinho as orelhas, quando forem tomar banho. São pequenos cuidados de quem se gosta.
Depois desse dia, a sala mais bagunceira do colégio nunca mais foi a mesma. Aprenderam a ser responsáveis pela própria ordem e vinham alguns, mais do que os outros, de orelhas brilhando, de tanto que tinham sido esfregadas embaixo do chuveiro ou em alguma bacia d'água da época.
Foi essa a primeira lição da professorinha, que se repetiria ao longo de seus trinta e cinco anos de magistério. Ela aprendeu ali a tornar os alunos responsáveis pelo silêncio, para que a voz da professora pudesse fazer-se ouvir. E não silenciavam à toa, mas sim para escutar, acima de qualquer coisa, um bem querer explícito, não apenas em palavras mas em gestos, que nem sempre encontravam fora dali.
Os frutos dessa responsabilidade foi sempre motivo de espanto para muitas de suas colegas, que apenas conseguiam impor algum respeito ao som da emeaça de muitas réguas batidas na mesa, quando conferiam por si mesmas que a presença de professorinha não se fazia necessária para que o silêncio da turma continuasse, mesmo quando ela precisava ausentar-se da sala-de-aula.
Mas qual seria o santo do milagre? Bem, sempre contou a professorinha: eu cresci numa casa feliz, sem gritaria. Ninguém gosta disso. Um aluno vai gostar? Aprendi a conversar, a torná-los meus amigos, meus cúmplices. Quando eu precisava de ajuda, pedia. E sempre procurei tratar cada um deles como uma criança singular. Eu, por exemplo, quando era criança, não gostava de fazer lição-de-casa. Criança precisa brincar. Então, se eles me ajudassem e eu terminasse de ensinar a lição do dia, depois do recreio eles podiam fazer a lição-de-casa em sala-de-aula. E eu podia tirar as dúvidas deles, pois sempre achei que muitas mães não podem fazer as vezes da professora em casa. Muitas trabalham, chegam cansadas. Outras, nem sabem como ensinar, pois não foram ensinadas. Os alunos que eram mais espertos, depois que terminassem, podiam ir ajudar e ensinar os demorados ou fraquinhos. Eles adoravam se esforçar para se tornarem meus ajudantes e assim todos queriam aprender. Os mais fracos não eram motivo de zombaria ou menosprezo pelo colega, mas uma oportunidade para que eles pudessem compartilhar o aprendizado.
Foi em meio a essas histórias que cresci, ouvindo-as da professorinha, minha mãe, que foi quem me fez descobrir a letra.
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