Falava ontem sobre não querer se submeter à lei, em homenagem à lucidez singular. Pois bem: o traço, aqui, penso que pode ser relativo, sob uma ótica simples: a da própria ótica. A lucidez que penso proteger a tudo o custo, como o meu mais precioso bem, pode ser um apego temerário à ilusão. Uma ilusão que aprisiona, afugentando uma lucidez libertadora. A lucidez depende muito do quanto a minha visão alcança.
Portanto, preste sempre muita atenção num segundo pois bem: a voz da sabedoria. Mas é preciso saber escutar, pois na verdade nos acostumamos escutar só o que queremos, o que suportamos ouvir. Como já disse um sábio, chamado Jacques, a voz vem do outro, invertida. Num dizer simplinho, só escuto a minha própria voz, na fala do outro. De todo o resto, a gente se protege discordando. Ou mesmo sequer ouvindo a verdade do insuportável. O que colocamos sob o vulgo clichê da chatisse, pode ser um psiu para manter-se adormecido. Acorda, que o melhor é sempre um acordo, de coração para coração.
Os sons mais seguros, no começo dessa caminhada, você encontrará na espontaneidade das crianças. E, depois, escutando quem já viveu, ao menos, uns bons quarenta anos além de você. Quarenta anos, significando o lapso temporal suficiente para a resposta da terceira geração, aos conflitos inerentes entre a primeira e a segunda. Num segundo dizer simplinho, os avós geralmente resgatam as eventuais culpas em relação aos filhos (não importa se certas ou erradas), nos netos. É o silogismo trazido para o trato social, transmitindo a cultura singular do laço familiar. Essa, porém, é apenas uma das faces da moeda da voz sabedoria. A outra face é a sintonia com a ressonância da voz do seu coração, uníssona com a da sua razão. Se houver medos, não se sinta covarde, mas prudente, por fidelidade a você mesmo. O que não se confunde com covardia, que é estar longe do seu coração. Lembre-se: você será sempre o responsável por cada passo que der na vida.
Fique, agora, com Fernando Pessoa. Uma Pessoa, assim como você.
Anarquismo
(Fernando Pessoa)
A noite e o caos fazem parte de mim.
Volto-me até o silêncio das estrelas.
Sou o efeito de uma causa do tempo,
do Universo (quiçá o exceda).
Para encontrar-me, devo buscar-me entre as flores,
os pássaros, os campos e as cidades,
nos atos, nas palavras e nos pensamentos dos homens,
na noite de sol e nas ruínas esquecidas de mundos desaparecidos.
Quanto mais cresço, menos sou.
Quanto mais me encontro, mais me perco.
Quanto mais me provo, mais vejo
que sou flor e pássaro e estrela e universo.
Quanto mais me defino, menos limites tenho.
Os transbordo todos.
No fundo sou o mesmo que Deus.
Minha presença atual contém as idades anteriores à vida,
os tempos mais velhos da terra,
os ocos do espaço antes que o mundo fosse.
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