sábado, agosto 27, 2005

Um não bem-educado, por um bem-educado, muito obrigado!

Lá veio o Murilo** ontem, me contando como aprendeu a ser mal-educado! Tst, tst, tst... um moço tão bem-educado, num país de tantos carentes de educação, não deveria concluir assim. Digo concluir, pois falar bem, isso sim a educação possibilitou ao Murilo o lapidar, extraindo o brilho do seu bruto - DiAmante!!! Pausa aqui para registrar a minha rima singela - um redutível que foi possível, de um belo, muito belo:

Minha arte
É lapidar teu bruto
Extrair teu brilho
DiAmante.


Voltando ao Murilo, depois de explicar direitinho o be-a-bá da sua educação religiosa, a qual aceitava antes de se render ao agnosticismo, que lhe ditava os mandamentos de perdir perdão e perdoar - esse último, sem pedido ou não, mas sempre de prontidão e proporcionalmente à ordem numérica elevada à magnitude, de setenta vezes sete, no mínimo -, deu o tom da sua cultura, da sua formação filosófica, e falou de Sartre. O sobrinho de um barão assinalado pela ridicularização decorrente de perdoar seus empregados, nos confins da África, toda a vez que roubavam comida da casa do patrão, chamado Albert Schweitzer, famoso missionário de sua época. Sobre ele, disse o Murilo exatamente assim:

"Ah, e era tio de Jean-Paul Sartre, o sobrinho filósofo que teria dito que levou trinta anos para se libertar da personalidade fortíssima, dominadora, de Schweitzer. No livro, Schweitzer inovou, ao revelar-me um conceito impressionante. Disse que, lá na África, os empregados negros de vez em quando roubavam algo da casa, e ele Schweitzer, dentro da moral cristã, os perdoava - imagino eu que pelo menos setenta vezes sete. Resultado: dentro em pouco não o respeitavam mais. Os outros empregados perdiam o respeito. Ele aprendeu que tinha que punir o faltoso e aí ganhava o respeito dos demais. O raciocínio deles era o seguinte: patrão que perdoa é porque é fraco, porque precisa do trabalho do ladrão, porque não tem condições de demitir o ladrão. Patrão forte, poderoso, pune, põe na chibata, o faltoso, mostrando que não tem medo de o empregado ir-se embora."

Vou prosseguir com ele, o Murilo, para compartilhar um pouquinho a razão do meu bem-querer:

"Perdoar os outros nunca foi problema. Para alguém criado dentro do ensinamento de que somos imperfeitos, é fácil entender e perdoar a imperfeição alheia, e perdoá-la infinitamente. O problema que me aconteceu foi outro. Foi quando eu pedia perdão ou desculpa.

Nos primeiros tempos tudo bem, porque como eu vivia dentro da igreja, estudando em colégio da igreja, todos os amigos, bem como os desafetos, eram da igreja, e o sistema de pedir perdão funcionava admiravelmente. Mas quando entraram membros de outras comunidades, a fórmula passou a dar errado. "


.... pausa para o trecho do tio do filósofo, suprimido e deslocado, lá em cima .....


"Foi então que percebi que havia sido educado não para um mundo religioso, mas para um mundo de cavalheiros e damas. Um cavalheiro ou uma dama são, acima de tudo, pessoas muito seguras de si, muito cônscias do próprio poder. Não precisam de artifícios para afirmar um poder dentro do qual nascem. Daí a expressão "bem-nascido", "de boa estirpe", "de cepa nobre," sempre referências às raízes. Os nobres nascem encarando o poder com a maior naturalidade, como algo que faz parte deles. Então, quando recebem um pedido de desculpas, valorizam quem pediu as desculpas. Vêem no ato um ato de grandeza. Passam a gostar mais, e não menos, da pessoa que se desculpou. Valorizam-na, como portadora de boa índole e de boa educação, em vez de desvalorizá-la. Vêem o ato de pedir desculpas pelo lado positivo, não pelo lado negativo. Pensando ter sido educado numa comunidade cristã, flagrei-me tendo sido criado numa comunidade de mentalidade típica de nobres.

Já a plebe ignara, a plebe rude, vê de outra maneira. Qualquer pedido de perdão, de desculpas, é sinal de fraqueza ou, pior ainda, de insinceridade, e desqualifica e desvaloriza quem se humilhou. Ou as desculpas não são aceitas, a título de desculpas esfarrapadas, ou são aceitas, mas geram no ofendido o direito de tratar arrogantemente o que se desculpou. Pedir desculpas à plebe é uma catástrofe. O que justifica, infelizmente, o dito dos nobres de que a plebe não tem razão, nunca.

Isso tem duas consequências. Uma, é que é fácil distinguir quem é nobre e quem é plebeu de espírito. Peça desculpas, e veja a reação. Se a reação for de reatamento, de tudo bem, aconteceu, mas está superado, você está lidando com um ou uma nobre de espírito. Se a reação for você está dando uma desculpa desonesta, esfarrapada, você está é procurando se eximir da responsabilidade - não tenha dúvida, você está lidando com um plebeu de alma. Ou plebéia.

Em termos de frequência, descobri que, nesta terra idolatrada em que vivemos, a plebe de espírito supera, em muito, a nobreza. Esta última, tenho que reconhecer, ainda é conservada pelos presbiterianos, metodistas, e bem menos mas ainda um pouco pelos adventistas (essa é minha experiência de colégio interno), ou por outros setores conservadores da sociedade, que não se modernizaram por um lado mas, por outro, mantiveram os valores da nobreza. Em outros setores, porém, caiu-se não na farra, mas no plebeísmo espiritual. Que é sinônimo de ódio ao ser humano. Se você se humilha, se você pede perdão, tanto pior para você. Não tem desculpa, não tem perdão. Você está sendo oportunista, você está fugindo, não está enfrentando.

E foi assim que fiquei mal-educado. Hoje, raríssimamente peço desculpas de minhas inúmeras falhas. Prefiro reconhecê-las para mim mesmo, no silêncio da noite. Em 99 por cento dos casos, vão-se tentar prevalecer sobre mim porque me "agachei" e quem se agacha é um desgraçado. É que nem mulher que faz certas coisas - se pedir perdão, é aquilo, e pronto.
Hoje não peço perdão nem desculpa nem excusas. Sou mal-educado e grosso por convicção. Perdoe-me o 1 por cento de nobres. "

Gostaram de lê-lo também? Eu gosto. Pois bem, agora prossigo eu:

A questão para mim é o que vou contar um dia em "A marijuana para um filho", mas talvez consiga aqui adiantar a mensagem de lá. É preciso sim saber viver, mas não posso viver só de sim, sim, sim. É preciso dizer não! Mas isso não se confunde em nada com egoísmo. Quando o não porta um bem maior em si e é dito com amor e respeito, tanto por quem o diz como para quem se diz, esse não traz em si a segurança do entendimento e da compreensão, mesmo que essa última não venha de imediato. O exercício da compaixão não significa dizer sim, quando se deve dizer não. Mas sim ter um amor maior para quem se diz esse verdadeiro não. Esse é o traço da lei justa, da lei necessária.

É mais ou menos como escutava hoje, numa entrevista de um programa infantil, quando se questionava a respeito da educação das crianças através do entrenimento - que tantas vezes traz consigo a vinculação de mais um produto na prateleira do consumismo -, onde a entrevistada (sou péssima para nomes, perdoem-me) fez a seguinte alusão: tudo bem, o que importa é o momento mágico da imaginação da criança, o elo que se passa entre quem conta a história e a criança que a ouve, a assiste. Agora, se os pais forem consumistas, vão ter maiores dificuldades de impor respeito genuíno quando precisarem dizer: não meu filho, você não precisa de mais esse brinquedo. (abro aqui um parênteses para dizer que esse exemplo eu uso para dizer da necessidade do não justo - não estou entrando na seara de repassar culpas de filhos para pais, por uma infinitude de motivos cujas razões virão no momento oportuno). Voltando, eu faço coro à entrevistada: e por isso vamos deixar de contar histórias?

E não só para o Murilo, assim termino: para ser verdadeiramente grande, você precisa estar por baixo. Pois são esses grandes pequenos quem têm a força necessária para sustentar muitos pequenos, que são grandes mas não o sabem. O que não se confude, sobremaneira, com a pequenez da mesquinhez, bricando de asa-delta. Denifitivamente, esses não passam de Ícaros que, enquanto não fizerem as pazes com o melhor de si mesmos, jamais saberão que possuem asas próprias, ora disfarçadas de imaginação. Asas que todos nós temos, mas ainda escondidas na alma de quem não encontrou o jeito certo de trazer o seu melhor dom para o concreto do real, realizando com a liberdade de ser quem se é. E ponto, mas não final... três pontinhos fica melhor, para dizer que estamos sempre caminhando, mesmo diante das pausas necessárias.

Por hoje é isso - idéias meio soltas, sem maiores conclusões, pois o melhor é sempre instigar a continuidade do pensar.

*o muito-obrigado do título foi por adorar riminhas tolas. Deixo aqui, para o Murilo, o meu sempre muito-obrigada! E um beijinho.
** Murilo Paes Leme, amigo, filósofo, professor de inglês, tradutor e escritor nas horas vagas - puro hobby, que é quando a gente faz o que mais gosta. Ah, será que um dia trabalho e hobby andarão de mãos dadas? Pelo sim, pelo não, hobby só faz é bem.

Nenhum comentário: